32º Domingo do tempo
comum (ano C)
1ª leitura: 2º Livro dos
Macabeus, 7, 1-14
2ª leitura: 2ª Carta de
S. Paulo aos Tessalonicenses, 2, 16 - 3, 5
Evangelho: S. Lucas, 20,
27-38.
Jesus Cristo, por
vezes, parece implicativo, até com uma espécie de ironia, e quase
que nos deixa desnorteados. Mesmo que lhe dêmos o desconto do estilo
semítico, cheio de antíteses, paradoxos e exageros, o seu
«evangelho» dá pano para inúmeras e estranhíssimas mangas. Com
frequência, deixa-nos “a aguar”. Como gostaríamos de o ouvir falar
sobre o sentido das Escrituras, como terá feito com os discípulos de
Emaús (S. Lucas, 24, 13-35)! Ou sobre o sofrimento, a morte e de
como é que tudo isto se transforma em vida eterna! Ele bem nos diz
que a nossa vida deve dar uma volta e que Deus dará uma grande volta
à nossa vida – mas entretanto deixa-nos mesmo às voltas…
As leituras reflectem a
fé natural em que esta vida pede mais vida e que não estamos
destinados à extinção nem a vaguear tristemente pelo «outro mundo».
A passagem dos Macabeus
é um impressionante relato do «martírio» duma família inteira. Mas
não terá sido insensatez deixarem-se matar só por não consentirem em
«comer carne de porco»? É verdade que a Lei judaica o proibia.
Contudo, também é verdade que Jesus achou plenamente justificáveis
algumas «ilegalidades»: a do rei David e dos seus companheiros por
comerem o pão consagrado; e a «ilegalidade» de vários comportamentos
dos discípulos e de si próprio. E lembrava que a Lei foi feita para
os seres humanos e não estes para a Lei (Marcos, 2, 18-28).
À primeira vista,
trata-se de perfeito fanatismo, inaceitável hoje em dia. Porém, quem
ler a história notável dessa geração verá antes o exemplo de
confiança absoluta no projecto de Deus como projecto do maior bem
para o ser humano, que estimula ao compromisso na instauração da
ordem e justiça. Comer a carne de porco equivaleria a renunciar ao
grande conjunto de valores humanos, que a religião judaica promovia.
Não se pode acreditar em Deus sem acreditar que para Ele somos
eternamente vivos. Mostrar fraqueza perante o rei da Síria seria,
para esses macabeus, não acreditar na vida.
E podemos esquecer os «Macabeus»
de todos os dias? Aqueles que, religiosos ou não, recusam honrarias,
subidas de posto, proventos de arregalar os olhos… porque não querem
atraiçoar a experiência íntima e bem forte de que há outros valores
a defender. Não fraquejam perante os que «lançam ao caldeirão» os
verdadeiros defensores da dignidade humana.
Não temos um Deus que
só se cruza connosco no sofrimento, ou para nos pedir coisas
difíceis, ou para nos dar má consciência durante os momentos de
prazer. Isso seria um Deus anti-vida – ora Deus, sob o ponto de
vista religioso, é a fonte da energia desta vida que chamamos
«terrena». Deus não nos fez para deixarmos de existir (Sabedoria,
11, 24). Aliás, S. Lucas, logo a seguir ao texto do evangelho,
mostra Jesus a “implicar”com os fariseus, a ver se os fazia cair na
conta de que Deus «não é um Deus dos mortos mas dos vivos»,
eternamente em ligação com cada pessoa chamada à existência.
A história das ideias
mostra o impasse em elaborar um conceito racional de «ressurreição»,
por muito que nos debrucemos sobre o mistério da vida e da nossa
natureza corpórea. Cada pessoa sente que «é um corpo», sujeito a
transformações por vezes violentas, até que «volte ao pó de que foi
formado» (esta constatação aparece logo no Génesis, 3, 19).
A imagem que cada qual
faz de si próprio e de cada um dos outros, capaz de amar (a si mesmo
e aos outros), de se relacionar, de viver a história e de nela ser
activo... nada disto se compreende «sem corpo». O corpo é a nossa
identidade. Mas nem na Bíblia se encontra fundamento para a ideia
tradicional de uma futura «reposição» do corpo que morreu.
Por isso se desenvolveu,
a partir dos evangelhos e de S. Paulo, o conceito de «um corpo
depois do corpo» (um «corpo espiritual», 1 Cor. 15, 42-45) para «a
vida depois da vida».
Para o que acontece
depois da morte, só temos a promessa de que a aventura com Deus
nunca mais acaba de nos fazer felizes.
A vida não pára mesmo de
dar muitas voltas…
10-11-2013 |