Liturgia Pagã

 

«Quem tem unhas toca guitarra»

Domingo 31 do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Livro da Sabedoria, 11, 22- 12, 2

2 ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses, 1, 11-2,2

Evangelho: S. Lucas, 19, 1-10

 

Quando, em miúdo, tropecei neste provérbio, só pensava naquelas «unhas postiças» que via nalguns guitarristas, e que verdadeiramente me fascinavam. Olhava-as como um feitiço para tocar bem guitarra.

E tudo isto a propósito do evangelho de hoje: sempre tive um fraquinho por Zaqueu, aquele «homenzinho» que trepou a uma árvore para ver Jesus – embora não conste que fosse mestre nalgum instrumento musical e muito menos em guitarra…

Como era natural, só mais tarde pude compreender o que era aquilo de «ter unhas» e de «tocar guitarra»; e que muita gente, que parece subir na vida, apenas depende de unhas postiças, que facilmente caem dos dedos…

Zaqueu nunca teria conseguido trepar tão alto sem as «unhas» da determinação em aproveitar as capacidades próprias. E furou pela multidão, sem se acanhar por ser «de pequena estatura». Se fosse um homem alto, o mais provável seria ficar a ver Jesus por cima da cabeça dos outros. Mas Zaqueu arranjou energia para trepar ao sicómoro e poder assim apreciar à vontade o que se passava. E até deu nas vistas… pois Jesus quis hospedar-se em casa dele e acabou por ter coragem para se enfiar numa aventura não programada…

Chefe de cobradores de impostos, não era olhado com simpatia, tanto mais que ele próprio não tinha fama de honesto. O narrador, S. Lucas, gosta de histórias deste género, como o chamamento de Mateus ou Levi (5, 27-32) e a parábola do fariseu e publicano (18, 9-14, lida no domingo passado). De um lado, estão os «justos» fanáticos apegados a uma lei petrificada, lembrando aqueles que julgam tocar bem só porque têm unhas postiças; e condenam quem pensa e age de maneira diferente (donde o sentido pejorativo de «fariseu») e assim condenaram com violência a atitude de Cristo. De outro lado, estão os «publicanos» reprovados – como acontece ainda hoje a quem procura seguir Jesus Cristo a sério.

De facto, Deus não escolhe pela boa aparência física ou social (que não deixam de ser coisas boas); como também não se deixa enganar com as medidas humanas e manifestações de honrarias. Quando o profeta Samuel procurava um homem bom que substituísse o rei Saul, ficou impressionado com um dos irmãos do futuro rei David. «Mas o Senhor disse a Samuel: Que não te impressione o seu belo aspecto, nem a sua alta estatura... o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração» (1º livro de Samuel, 16, 7). E preferiu o irmão mais novo, que andava no monte com os rebanhos.

Quanto mais alto se trepa, melhor apreciamos o mundo à nossa volta e a vida inteira. É como voar alto. E se apurarmos a visão, descobrimos coisas maravilhosas, como o conseguiram grandes «alpinistas» do Antigo Testamento (1ª leitura): em que Deus é percebido como amigo da vida, intensamente interessado na qualidade dos nossos projectos; para quem só conta o bem que se faz, e que ensina a corrigir e a aprender com os erros – o que nos leva a reconhecer o mal e procurar vencê-lo. Um Deus que ama tudo o que existe. Percebemos que todo o universo é uma canastrada de preciosidades para Deus… em quem podemos confiar, se queremos jogar no que é verdadeiramente seguro e nos realiza plenamente. Quando estamos livres para olhar sem peias, percebemos que o nosso mal é desviar os olhos do que é essencial: a realização da pessoa humana através de todas as situações da vida.

E por isso S. Lucas gosta tanto de falar da alegria de Deus em perdoar – do que é exemplo Jesus Cristo. Mas perdoar não é atirar para trás das costas ou ficar indiferente: é apostar na corrida para um futuro melhor, aprendendo com os erros do passado. A «salvação» é um trabalho em equipa com Deus.

E Zaqueu orientou-se pelo que era essencial.

Sentiu-se tão feliz, tão realizado, que se pôs a prometer todas as boas acções possíveis (como acontece à gente quando sonha o que fazer se nos sair o euro-milhões). Deu-se conta que não andava a tocar afinado, mas que tinha um mestre capaz de fazer dele um verdadeiro artista…

03-11-2013


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