Liturgia Pagã

 

«Ora viva»

Domingo XIV do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Isaías 66, 10-14

2ª leitura: carta aos Gálatas, 6, 14-18

Evangelho: S. Lucas, 10, 1-20

 

É tão bom ser saudado com verdadeira simpatia!

Mas… e se a vida corre mal? E se apetece tudo menos viver?...

No evangelho de hoje, encontramos uma antiga saudação, que é já quase só utilizada em ritos religiosos: «Paz a esta casa!», «A paz seja contigo!»

A milenar origem judaico-cristã desta saudação talvez tenha começado a cheirar a clericalismo, a beatice e sobretudo a hipocrisia. Mas alguma vez pensamos no que pode significar encontrar alguém pela manhã e desejar-lhe «bom dia»? Não é só desejar (se é que desejamos) que ele tenha um bom dia: é desejar – e ajudar – a que tenha gosto de viver.

O gosto de viver é expresso na 1ª leitura, uma paz cheia da afectividade e carinho, que envolvem o berço do amor; gerando um ambiente em que a dor das próprias lágrimas pode ir adquirindo, suavemente, as tonalidades da alegria – escondida no passado, esperada para o futuro…

Na leitura de S. Paulo, difícil de interpretar porque totalmente fora do contexto, podemos ler a experiência de como «a marca» (ou «estigmas») de Jesus Cristo é a paz firme, que nada pode perturbar porque é uma estrutura interior forte, e que não depende de rituais nem de repetição rotineira de palavras esvaziadas de sentido.

A palavra «Paz» não significa apenas ausência de conflito ou um «pacto» formal de não agressão. A riqueza da sua semântica é sugerida pelo radical indo-europeu «pak», donde derivam palavras como «pau» e «pacto». A ideia de estabilidade e firmeza é sobretudo desejada ao nível pessoal de bem-estar. E porque o «descanso perfeito» e a «vida perfeita», sem perigo de fracasso, não passam de um ideal nesta vida, a expressão «descansar em paz» traduz a esperança de um sucesso garantido, após a «guerra» da vida. Por outro lado, na vida que conhecemos, «a paz é o fruto da justiça» (expressão célebre no magistério católico, em meados do séc. XX, fazendo eco ao salmo 85) e também a força que não desanima e muito menos desespera frente aos embates da vida (os mais dolorosos são «os frutos da injustiça»). «Paz» é assim identificável a «vida».

O termo grego para «paz» («eiréne») usado no Novo Testamento, não consegue traduzir toda a riqueza do que é um conceito central na cultura hebraica: «shalom».  Como saudação, esta palavra equivale a desejar que o outro se sinta bem em todas as situações da vida, gozando de bem-estar físico e espiritual, em plena harmonia consigo e com todo o ambiente. Abrange o que actualmente pode ser definido como «saúde total», bem como o tradicional conceito de «bênção», pedindo a Deus todos os benefícios com que pode cumular um ser humano.

É devido à riqueza desta palavra, que ficamos desiludidos ao ouvir certos políticos falarem de paz. Porque muitas vezes dizem ou só querem dizer uma palavra vazia, para não terem que se comprometer num rápido e eficiente plano de paz – se é que não pretendem, clamando «paz!», entorpecer os seus ouvintes para que não reajam a uma dissimulada ofensiva contra o verdadeiro interesse comum.

O evangelho de hoje mostra bem como os 72 discípulos se admiraram da força dessas palavras tão simples: «Paz a esta casa!»

Como é frequente na Bíblia, «72» é um número simbólico, chamando a atenção para que o anúncio do reino não se limita ao pequeno grupo dos apóstolos: todos o devemos propagar. Mas se queremos anunciar a boa nova, é essencial que também sejamos missionários da «boa educação», pois as palavras podem ferir e criar rejeição – e então «o pó sacudido dos pés dos missionários» é sobre estes que recai e não sobre quem, com razão, não pode ver neles o sinal humano da «boa nova».

07-07-2013


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