Liturgia Pagã

 

«O grito»

30º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro do profeta Jeremias, 31, 7-9.

2ª leitura: Carta aos Hebreus, 5, 1-6.

Evangelho: São Marcos, 10, 46-52.

 

Quem não conhece a pintura a óleo de Edvard Munch, que é posta a par da «Mona Lisa»? Como é possível que uma tela inerte, fechada em si, no silêncio perpétuo, arraste o nosso olhar como quem é atraído pelo mais tremendo grito de solidão?

Quantas vezes na vida sentimos que somos um grito que perdeu a voz? Não haverá ninguém que nos ouça? Quem dera que todos nós pudéssemos encontrar alguém que nos fite nos olhos, escute o nosso grito e o deixasse morrer no calor da amizade.

Outras vezes, tanto gritamos que toda a gente olha para nós – e, ao menos para nos ver calados (Lucas,11,5-8) satisfaça o que pedimos – ou se junte à nossa manifestação de alegria.

Por isso solta brados de alegria o vigia de Israel, e todas as gentes são convidadas a exultar ruidosamente, porque regressa do cativeiro «o resto» do povo do Senhor (1ª leitura); e brada o cego de Jericó, para atrair, a todo o custo, a atenção de Jesus (evangelho).

Pode ser importante soltar um brado de vez em quando, até para manter a saúde psicológica e a alegria saudavelmente infantil. E muita gente perde a vida por não conseguir bradar por socorro da maneira mais eficaz …

 O próprio Deus, através dos profetas e de Jesus, grita connosco e bem: quer para avisar do perigo quer para se alegrar connosco. E é o primeiro a incitar-nos a clamar por ajuda e também a gritar de alegria.

Precisamos de gritar bem alto as injustiças em todo o mundo, mas esses brados de nada valem se não pensamos no que deve ser feito e na capacidade e honestidade que devem possuir aqueles que escolhemos para representar os nossos brados. E assim podemos ir na marcha em que os mais ricos, os mais atletas, os mais espertos para furar na vida, os mais intelectuais, os mais diplomatas… se querem participar, vêm à mistura com os coxos, com os cegos, com os que têm amor para «perder tempo» com os filhos como as mães que transportam a vida dentro de si ou a seu colo… (1ª leitura). É na autêntica partilha deste caminhar, que cada qual se enriquece e fortifica com os talentos e a força de todos os mais.

Ao lermos o evangelho, vemos que há quem persista em se aproximar de Jesus, mesmo se alguns lhe barram o caminho; e que quem mais brada e caminha resolutamente para encontrar a salvação é aquele que é cego de corpo – os que não se acham cegos, são os que levantam obstáculos! Muita gente se julga importante por formar o séquito e a guarda (!) de Jesus, e não facilita a aproximação dos que parecem «estranhos» – pelas ideias, comportamentos, estatuto social…

Para Deus, ninguém é inútil – este é um dos grandes princípios presentes na parábola dos trabalhadores da última hora, que recebem tanto como os que trabalharam o dia inteiro (Mateus, 20, 1-16). Seja qual for a idade ou o tipo de vida, cada ser humano, pelo mero facto de existir, «brada a Deus» – porque tem sede de mais. E por isso, Jesus se apropriou da tradição profética ao dirigir-se de modo especial aos que sentem na pele as injustiças da vida e que precisam de estar atentos a tudo o que possa ser um sinal de vida nova.

Se não somos sensíveis aos problemas dos outros, não nos admiremos que se propague a violência. Se não somos capazes de caminhar, sem snobismo, junto dos que podem menos e, sem servilismo, dos que podem mais, não vamos a lado nenhum, por muita sensibilidade que publicitemos.

Jesus Cristo é exemplo de quem soube caminhar com uns e com outros. Não fugiu à fadiga e sofrimento de muitos «encontros», como também não fugiu ao prazer do convívio com amigos – fossem pobres ou ricos.

Diz-nos o Evangelho que o cego, ao ser chamado por Jesus, «deu um salto» para chegar mais depressa – e ainda era cego! Bastou-lhe sentir e prestar atenção à voz divina – a voz que não nos deixa adormecer no nosso cantinho. Só com esta coragem é que vale a pena ter os olhos abertos, provocando, com os nossos «brados e saltos», a luta por mais e melhor vida.

28-10-2012


  Página anterior Página inicial Página seguinte