29º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª
leitura: Livro do profeta Isaias, 53, 10-11
2ªleitura: Carta aos Hebreus, 4, 14-16
Evangelho: São Marcos, 10, 35-45
«Sete cães a um osso» – bem se podia aplicar à 1ª parte da leitura
do evangelho. É o osso do poder (económico, político, religioso…)
que atrai naturalmente o ser humano, e que não seria mal nenhum se
as pessoas não agissem como cães raivosos, que se atacam uns aos
outros para ver quem rouba o poder, ou que se juntam para devorar
«irmãmente» quem lhes não pode fugir das garras. Tiago e João apenas
quereriam meter uma cunha a Jesus, para que tivessem os lugares
principais quando Jesus alcançasse todo o «poder messiânico». Mas
Jesus tinha outro conceito de «poder», não se prestava a manobras e
deixou bem claro que só fica a seu lado quem tem coragem para
enfrentar momentos difíceis. Enfim, podia ter dito que se tratava de
«um osso duro de roer».
A 1ª leitura deste Domingo refere-se de novo ao «servo de Javé» –
figura misteriosa que os próprios exegetas não conseguem
identificar: símbolo do «Povo escolhido», no seu conjunto? Símbolo
de todos aqueles que trabalham com Deus? Ou será a representação de
algum profeta, rei ou qualquer outra personalidade, cuja acção é da
maior importância para o projecto da salvação da Humanidade? É
provável esta última hipótese – sem se aplicar necessariamente ao
Messias. Como quer que seja, a missão do «servo» é proclamar o
direito e a justiça em toda a terra, mesmo que tenha que enfrentar
perseguições, torturas e a morte. Proclama a certeza do sucesso
final e que ficará para sempre «junto» do Deus vivo.
Marcado pelo sofrimento e pelo aparente abandono de Deus, o «servo»
lembra um pouco o sofrimento de Job – que não compreende a razão do
seu sofrimento. Deus apenas lhe faz sentir que «os caminhos de Deus
não são os nossos caminhos» (Isaías,55,8) e que a nossa razão não
penetra o que é Deus (Job,42,3).
Os quatro «cânticos do servo», dispersos nas crónicas do profeta
Isaías, apresentam-no uma pessoa silenciosa, símbolo da tremenda
inquietação sobre o sentido de toda a vida humana. Como unir Deus e
Humanidade? Que realidades são estas? Para a linguagem humana,
poderiam ser os expoentes, de um lado, da pura vida sem sofrimento,
sem morte, sem limitação alguma; do outro, o da consciência da
desproporção entre essa vida perfeita e a dos seres que se
transformam continuamente, de morte em morte, de dor em dor, mas
também de alegria em alegria, de amor em amor, de vida em vida.
O «homem das dores» da 1ª leitura é o mesmo sobre quem Deus «fez
repousar o seu espírito para que leve às nações a verdadeira
justiça» (Isaías, 42, 1). Será preciso tanto sofrimento para que a
justiça se realize? As leituras dos últimos domingos juntam justiça
a martírio: martírio significa «testemunho voluntário».
Jesus Cristo, que a tradição cristã identificou ao «servo de Javé»,
mostrou que o sacrifício autêntico é darmos a vida (o trabalho de
todos os dias!) pela construção de um mundo de justiça.
Jesus Cristo nunca se apresentou como sacerdote (e muito menos como
«sumo sacerdote»), nunca exerceu essas funções nem as propôs aos
seus seguidores. E critica a organização do sacerdócio demasiado
semelhante à dos correntes poderes políticos e económicos.
Instituiu, isso sim, e com todo o vigor, um pequeno grupo propagador
de Vida e Justiça.
Demarca-se da solenidade e importância terrena. Fala com todos e
aproveita as vistas curtas dos próprios apóstolos para dar lições
profundas aplicáveis (por vezes, de que maneira!) a todos os
«sucessores dos apóstolos»: «Sabeis que os que são considerados como
chefes das nações exercem domínio sobre elas, e os grandes fazem
sentir sobre elas o seu poder. Não deve ser assim entre vós. Quem de
vós quiser tornar-se grande, tem de mostrar que está mesmo ao
serviço dos outros».
E
não abdicou de se refugiar no carinho de gente amiga. Precisamos de
treinar aquelas manifestações de apreço, aquela companhia amiga,
aqueles diálogos onde há críticas e sugestões… que favorecem a
formação de pessoas suficientemente corajosas para proclamar e
construir um mundo novo. Teimosos perante o osso mais duro de roer.
21-10-2012 |