21º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro de Josué, 24, 1-2. 15-18
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Efésios, 5, 21-32
Evangelho: S. João, 6, 60-69
Antigamente, eram matéria de confissão! Convenhamos que é saudável
evitar essa tendência para condenar o outro, levados mais por uma
reacção sentimental do que pela apreciação calma do que nos
incomodou. Quando isto acontece, a melhor reacção é «afastar-se»,
pelo menos até que possamos ver as coisas de um modo calmo e bem
informado, sem preconceitos.
Mas o
reverso da medalha é igualmente importante e muito pouco falado:
também é condenável dizer ou fazer coisas de tal modo que provoquem
nos outros os tais «juízos temerários». Não convém deixar passar
palavras e actos imprudentes e muitas vezes perversos.
A
história de Josué mostra a preocupação por organizar e entusiasmar
todo um povo à volta do mais alto ideal possível: caminhar com Deus.
Na medida em que interiorizamos este ideal, ganhamos uma grande
força. Mas temos que nos preparar para aguentar tanto o «silêncio de
Deus» como as suas “exigências”. Na história do Judaísmo, esta
«exigência» provocou um alto nível cultural. Josué forneceu «razões
suficientes» para que o povo concordasse em aceitar Deus como o
verdadeiro «condutor» ou chefe de Israel. A experiência religiosa
colectiva era suficientemente forte para descobrir o sentido desta
proximidade do Deus único com o povo escolhido para O revelar. Juízo
temerário seria pensar que Josué os estava a enganar.
Já o
mesmo não se terá passado com Jesus Cristo, segundo o autor do
«evangelho de S. João». Enquanto que Josué apresentava, para a
história de Israel, uma grelha de interpretação altamente motivante
e reconfortante (apesar das «exigências» de Deus), Jesus é
representado, no 4º evangelho, como tendo usado palavras e imagens
compreensivelmente chocantes para a religiosidade judia do tempo
(uma estranha filiação relativamente ao Deus único, dar a sua carne
como alimento de vida eterna, etc.). A experiência religiosa dos
ouvintes dividiu-se entre os que não viram razões suficientes para
concordar, e aqueles mais sensíveis e abertos à novidade, mesmo sem
perceber claramente. Não terá havido juízos temerários (cada grupo
terá sido honesto) mas já houve discórdia. Historicamente, é
provável que o autor do evangelho simbolize nesta passagem a
rejeição de Jesus por parte dos judeus tradicionais.
Note-se ainda que o discurso de Josué parece claro, enquanto que o
atribuído a Jesus é altamente simbólico (embora profundo),
favorecendo o surgimento de juízos temerários acerca do valor da
mensagem. A maneira provocatória como é apresentada a posição de
Jesus naturalmente provoca afastamento de alguns – que talvez,
depois de reflectir, venham a ser discípulos com adesão mais
profunda. Não está em causa a afeição por Jesus.
Mas
que dizer da 2ª leitura? Aí lemos que a mulher se deve submeter ao
homem assim como a Igreja se submete a Cristo, sendo que o homem
deve amar e dar até a vida pela mulher. Com que propósito é que se
apresentam textos como este – que não tem sentido fora do contexto
histórico e teológico desta carta (escrita 30 a 40 anos depois do
martírio de Paulo), e cujo autor terá sido um sábio judeu, de
profunda espiritualidade sensível à unidade de todas as coisas em
Deus?
Muitos
temas desta carta divergem bastante das cartas originais de S.
Paulo. Por exemplo, a figura cósmica de Cristo e a relação nupcial
Cristo/Igreja. Cedendo à corrente organização hierárquica da
sociedade (como a de homem/mulher, livre/escravo), há retrocesso
relativamente à insinuação cristã (embora tímida) de igualdade
radical entre homem e mulher, por muito díspares que sejam as
funções (o cap. 7 da 1ª carta aos Coríntios é bem concreto e sem
pretensões universalistas e muito menos cósmicas – a moral das
cartas autênticas de S. Paulo é adaptada a comunidades específicas e
marcada ainda pela crença de que este mundo se irá transformar em
breve). Na carta aos Efésios a Igreja adquire conotações de
realidade sobrenatural, unificando todo o universo, de forma
hierarquizada, ligada a Cristo através dos apóstolos.
A
visão da unidade cósmica, por muito que aprofunde o tema central de
Cristo, não é imune à influência gnóstica e neo-platónica dos finais
do I século. O casal humano reflecte a ordem celeste (tema comum a
várias religiões orientais) e é apenas reflexo da misteriosa união
de Cristo com a Igreja.
Não
são coisas que nos levam a juízos temerários? A chamar maus aos que
não embarcam facilmente numa doutrina; a encontrar falta de bom
senso nos responsáveis pelos textos litúrgicos, quanto à escolha e
apresentação dos mesmos; a ver pura teimosia nos que defendem o
homem como mais adaptado do que a mulher para «funções divinas»?
Seremos culpados destes juízos temerários?
26-08-2012 |