22º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro do Deuteronómio, 4, 1.2.6-8
2ª leitura: Carta de S. Tiago, 1, 17.18.21.22.27
Evangelho: S. Marcos, 7, 1-8.14.15.21-23
Historicamente, o Livro do Deuteronómio (que significa «segunda
lei») tem o valor de autêntica «revisão constitucional»: retoma
organicamente as linhas de força da tradição e dos primeiros livros,
dando o devido lugar aos princípios gerais e à concretização desses
princípios no modo de vida do povo judeu. Provavelmente escrito nos
princípios do s. VII antes de Cristo, é nele que se encontra o
célebre «Shema Israel»: «Escuta («shema»), Israel! O Senhor nosso
Deus é um só e é o teu único Senhor. Serás fiel ao teu compromisso
com o Senhor, sem fingimentos perante ti próprio, perante os outros
e perante Deus» (6, 4-5). (Esta tradução livre inspira-se na carta
de Tiago, 1, 22-25).
Os autores do Deuteronómio souberam dar corpo à ideia de uma
autoridade que tudo vê e tudo sabe: as suas ordens são tão perfeitas
que nada pode ser alterado – pois representam fielmente a sabedoria
de Deus.
Se bem atentarmos, encontraremos argumentos semelhantes nos governos
ansiosos pelo poder absoluto. Um desejo que não se encontra apenas
nos políticos ou nos grandes potentados económicos, mas também nas
estruturas religiosas.
Porém, é neste livro que se vê claramente como Deus instituiu a
dignidade humana: sem a nossa vontade, a vontade de Deus é ineficaz.
Podemos querer ou não a «ordem» que nos é proposta. E este acto de
querer só é livre se constantemente renovado: compete-nos escolher e
agir de acordo com o sentido de justiça disponível no momento. É o
princípio de contínua correcção da «ordem», baseada no saber escutar
as opiniões mais diversas e ponderar os argumentos, invalidando a
imposição do mais «forte».
Por mais «divinas» que se classifiquem as palavras, nunca podem
fugir às limitações da comunicação humana: onde abundam expressões
gastas, equívocas, ou tão especializadas que perdem «valor de
troca»; outras vezes dogmatizadas, pouco adaptáveis à diversificação
dos interlocutores e sem a consciência da estreiteza dos limites
traçados pelo espaço e tempo em que vive cada interlocutor.
Só com esta consciência é que podemos descobrir Deus dentro da nuvem
dos textos bíblicos. Só podemos ter fé em quem está por trás dessa
nuvem – e para isso trabalhamos sem desânimo na «tradução» de Deus:
em todas as coisas e não só nos chamados «textos sagrados». Diz-se
que «toda a tradução é traição». De facto, as próprias palavras
atribuídas a Jesus Cristo são «atraiçoadas» pelo conhecimento e
visão limitada dos evangelistas acerca desse «homem extraordinário».
O próprio Jesus só podia falar e viver de acordo com os parâmetros
do seu tempo e cultura.
Jesus Cristo muitas vezes condenou a estagnação dos líderes
religiosos: fechavam os olhos à necessidade de mudanças e sobretudo
não tinham a coragem de alterar a maneira de pensar: ora nós não
somos bons por cumprirmos as leis mas por querermos o bem. E por
isso todas as pessoas têm a responsabilidade de se pronunciar para a
elaboração de leis cada vez mais justas, denunciando e combatendo o
que não defende a dignidade da pessoa humana e nunca se esquecendo
de perguntar e procurar sem hesitações qual o caminho mais sensato:
«porque aquele que hesita assemelha-se às ondas do mar sacudidas e
agitadas pelo vento» (carta de Tiago, 1, 6).
É
muito mais cómodo seguir rigorosamente um código de boas maneiras do
que ser de facto uma pessoa bem educada. Quer no Antigo e Novo
Testamento quer em muitos pensadores cristãos, sobressai a ideia de
que não basta o «estrategicamente correcto». Deus só se sente amado
quando nos preocupamos pelos outros, quando «fazemos as leis para os
homens» em vez de sacrificar os homens a leis dogmatizadas. Por
isso, as leis têm que ser continuamente repensadas.
O
livro do Deuteronómio levanta claramente a questão: um Estado vale
porque se gaba dos seus códigos, ou porque se pode gabar das suas
acções? Se as pessoas apenas enchem a boca apregoando os bons
propósitos, pela boca morrerão – como os peixes…
02-09-2012 |