20º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro dos Provérbios, 9,1-6
2ª leitura: Carta de S. Paulo aos Efésios, 5, 15-20
Evangelho: S. João, 6, 51-58
«Vinde
comer e beber o que vos preparei! E todos à volta da mesma mesa,
aprendam os caminhos estimulantes de novas experiências, tirando
partido da prudência e gosto pela vida!»
De
acordo com a 1ª leitura, é este o convite da Sabedoria, uma das
belíssimas passagens do Antigo Testamento, que revela uma
experiência saudável e adulta do «lugar» de Deus na nossa vida e de
que só nos «alimentamos» de Deus se nos sentamos à sua volta como
gente que precisa de ter juízo…
Partilhemos no banquete, mas para saber viver como «pessoas
inteligentes» – é o que nos diz a 2ª leitura: a Sabedoria de Deus
(ou, por outras palavras, o Espírito Santo) é mais vivida
naturalmente quando nos juntamos conscientes de que precisamos dela.
O
banquete como sinal da felicidade humana e da união com Deus é
recorrente na Bíblia e muito usada no Novo Testamento. Refeições e
banquetes são o exemplo imemorial, e sempre actual, de partilha e
junção de forças (não o fazem as mais diversas associações do nosso
tempo?). Só é pena que «acabem tão depressa»! E que as nossas
doenças, velhice e morte nos afastem desses momentos!
O 4º
evangelho explora muito esta ideia de que não ficamos plenamente
saciados nem com os melhores ou aparentemente «milagrosos» alimentos
(podia-se falar da transformação da água em vinho, da multiplicação
dos pães e do «maná» no deserto). A própria «última ceia» não livrou
ninguém da morte. Era imperioso encontrar um alimento que nos
libertasse da morte e pusesse fim a todas as nossas dores e as
transformasse numa alegria sem nuvens escuras (como se lê no
Apocalipse).
Não
esqueçamos que os primeiros cristãos, à semelhança de algumas seitas
modernas, julgavam iminente o regresso de Jesus Cristo (já na
«glória de Deus») como «salvador» de todos os crentes e juiz
definitivo da humanidade (levando os «bons» para o «seu reino»). Só
progressivamente se deram conta de que estavam a interpretar
infantilmente «o trabalho de Deus com os seres humanos»: é com
muitos trambolhões que a humanidade caminha para a sua perfeição,
devendo-a procurar como se «o dia D» fosse amanhã, mas renovando
este dever todas as manhãs, com o sabor de um dia novo a que muitos
se seguirão – não é errado pensar que «o fim do mundo» é a expressão
pessimista de «perfeição do mundo» (a perfeição também mete medo…
implica transformação, «metanóia» – e pensar a sério também cansa…).
O
capítulo 6º do 4º evangelho é provavelmente o resultado de uma
homilia ou meditação sobre a «Eucaristia» (=«acção de graças»):
todas as refeições, como símbolo de união e de vida, eram momentos
adequados para mostrar a nossa amizade com Deus (mesmo que o pão
fosse pouco…) e a alegria de o sentir como «fonte da Vida». «A
última ceia» descortinava um novo futuro inimaginável, justamente
quando a morte de Jesus mais se fazia sentir. Impunha-se que o pão e
vinho distribuídos num acto de união entre todos e com Deus
ganhassem doravante a dignidade dessa «comunhão» especial. Sem
comunhão entre os participantes, a força de Deus é posta de lado;
sem a vontade honesta de saber e sentir a força de Deus, a reunião
das pessoas é pouco mais do que uma ida ao cinema, e muito menos
vivida do que um jogo de futebol.
(S.
Paulo, na 1ª carta aos Coríntios,11,17-34, teve que pôr fim aos
abusos de transformar a «eucaristia» em mais uma comezaina).
Por
isso S. João reforça a importância de «crer», de aceitar essa nova
dimensão de comunhão com Deus, a única que nos permite «comer de um
pão que nos faz viver eternamente».
Atribuindo a Jesus a afirmação de que o seu corpo é verdadeira
comida e o sangue verdadeira bebida, o evangelista retoma também o
sentimento mais profundo detectado na história das religiões: só o
que é divino é que é plenamente real; tudo o mais é passageiro, é
uma sombra (por isso se pode identificar «Deus» com «Ser»).
No
evangelho de João, é nítida a oposição às crenças populares
dominantes no judaísmo (em particular ao conceito de «messias»,
ligado à vitória do «povo escolhido» nos «últimos tempos»). As
festas religiosas judaicas, que incluíam refeições «litúrgicas», não
favoreciam uma fé adulta, acabando por consolidar a «falta de juízo»
não só dos ignorantes mas também dos pretensiosos «doutos»: daqueles
que não se dispõem a sentir que «saber-se louco já é meia cura». O
convite da Sabedoria, na 1ª leitura, não é para aqueles que «sabem
que não têm juízo»?
A
situação dramática da comunidade cristã dos finais do século I e o
forte simbolismo do «evangelho segundo S. João» deram origem a uma
noção de vida e da figura de Jesus Cristo, envolta de profundo
misticismo, quase impossível de se compreender pelo «cristão comum»,
desde então até aos nossos dias. «Ter fé» em Jesus (vivente com
Deus) pode significar unir-se intimamente com a divindade – com a
«realidade verdadeira» que nos sacia plenamente. (Os próprios
especialistas apontam como é difícil interpretar o 4º evangelho).
Ao
longo dos tempos, será sempre um desafio descobrir e sentir a
ligação entre o cristão e Cristo, entre
a vida que vivemos e uma vida que (ainda) não vivemos.
Para partilhar ideias, manter a abertura de espírito e encontrar
banquetes sábios, será que a comunidade cristã vai oferecer à
humanidade o exemplo de «com-viver» e portanto de «com-morrer»,
fazendo passar à frente de tudo (de guerras, de angústias…) o sabor
do entrelaçamento das nossas vidas?
19-08-2012 |