Tive a sorte de encontrar um magnífico «companheiro
de defeitos» (vide artigo anterior): o «Senhor meu Sogro»,
que, entre outras, me contou esta coisa preciosa:
Nos domingos da Quaresma, a cidade inteira parecia
vibrar com o som grave e pungente do sino grande: «Penitêêência…
penitêêência!…»; Respondia-lhe outro sino: «Tan-ta-não!…
tan-ta-não!…»; Finalmente, largava o sinito da Capelinha, esganiçado
e repenicante: «Nem-tan-to-nem-tão-pouco!…
nem-tan-to-nem-tão-pouco!…».
A tradicional Confissão é olhada muitas vezes de
través, devido a excessivos sentimentos de culpabilidade, remorsos,
perda de estima própria, complexo de inferioridade… Tem mesmo havido
casos graves de foro psiquiátrico. O ritual era despersonalizado,
sujeito a um «guião»de perguntas demasiado intrusivas. A vida sexual
era ponto forte (obsessão institucional denunciada pelo papa
Francisco). A vida do cristão só seria louvável se seguisse
zelosamente «a vida perfeita» escrupulosamente detalhada nos
correntes «Devocionários». Descurava-se o cuidado psicológico e
capacidade de contextualização – dom felizmente revelado em vários
padres: para estes, a pessoa valia infinitamente mais do que a
formalidade do «manual de instruções».Os sinos, bem combinados,
tinham razão.
A palavra «penitência» traduz dois termos latinos
muito semelhantes de forma mas de sentido diferente:
PAENA: arrependimento, insatisfação, sentimento de
tristeza ou de culpa por não ter procedido bem (pena interior);
ideia genérica de imperfeição, de «quase» (penúltimo, península…).
POENA: castigo, expiação, compensação do mal que se fez (pena
exterior). Como se nota em penalidade, penitenciária, punir…
A fácil confusão gráfica originou a mistura dos
sentidos. Desta confusão padece a palavra «penitência». Em vez de
abertura à luz e à alegria, prevalecia o deprimente cenário de
lúgubres confessionários, a humilhação perante o «inquérito» à vida
moral (mais do que à espiritual), a imposição de umas tantas rezas,
desde 1 Avé-Maria a 3 Rosários e por aí além, sem a devida «devoção»
e até com efeitos contraproducentes. Mais valia uma sensata espécie
de «serviço cívico»… Felizmente, também se elaboravam estratégias de
correcção do mal feito e de projectos de vida.
A confissão privada (ou «auricular») exige profundo
acto de fé no carácter representativo de Deus no confessor. É
difícil de aceitar, devido em parte à crescente falta de confiança
nos sacerdotes como «conselheiros» (cfr. «Boas vindas e o Dom das
Línguas»). No entanto, o pensamento moderno admite que rituais
ou funções não perdem o valor só por serem presididas por quem não
revela as qualidades desejáveis: «qualquer» sacerdote pode ser
«representante e mediador» do Deus sempre criador, que nos faz
sentir «como novos», com nova capacidade de acção positiva.
Muitas pessoas preferem uma conversa informal com o
sacerdote, à semelhança de «companheiro de defeitos»; no final, o
«companheiro sacerdote» assume, ritualmente, a sua função de
anunciar a garantida alegria de Deus. Não há reconciliação sem
genuínas relações humanas. O seu sentido profundo não cabe num breve
ritual quase mágico.
Ao meditar o artigo «Penitencia» no «Nuevo
Diccionnario de Teología», dirigido por J. J. Tamayo, recolhi
estas ideias boas para partilhar:
Como acto religioso, é fundamentalmente um «tempo» de
«reconciliação»:
– Com Deus: «confessando» que vale a pena trabalhar
com ele (que nunca despede ninguém);
– Consigo próprio: recuperando a auto-estima e o
prazer de se ver capaz de sempre mais um passo em frente;
– Com a Igreja: que representa o meio social em que
vivemos a fé, e ao mesmo tempo simboliza toda a Humanidade – que
toda ela espera justiça e paz.
Reconciliação é, historicamente, o acto de «voltar a
unir-se» com amizade, formando verdadeiro «concílio», onde se pode
discutir e tomar decisões, sob o auspício da verdade, do querer-bem,
e do optimismo de Deus.
«Ainda vou à missa» – a essa festa da reconciliação.
Aveiro, 15-01-2020 |