Todo o mundo é composto de mudança

Com a sua intuição e sensibilidade poética, o nosso velho e saboroso Camões enunciava, neste célebre soneto («Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades»), a mais notável característica do mundo habitado e de todo o universo: «tudo muda». Mas a expressão mais famosa deste conceito vem de 500 anos antes de Cristo, quando o filósofo grego Heráclito, contra certas ideias feitas, escreveu: «pantarhei» («tudo flui», desliza, desaparece…). Alguns eruditos defendem que não teria escrito «rhei»  mas «khorei» («está em movimento, dança»), donde deriva «coreografia».Dir-se-ia que tudo vai evoluindo como uma coreografia sempre nova.

Todas as mudanças na vida – na ligação com as pessoas que amamos, nos projectos, ao mudar de casa ou de país (para melhor ou pior)… –  são momentos fortes em que «dançamos com a vida», a vida que por vezes nos arrebata ou nos deixa meio estonteados. Mas depois, passada a «ressaca», recordamos como essa experiência fortaleceu o entusiasmo para nunca desistirmos de «khorein»: «dançar» – não como a «fera amansada» no circo, mas com aquela arte de quem transforma em peças dignas de exposição as velhas  latas e garrafas (nem sempre de vinho do Porto…).

Há dias li a notícia: «Troca de padres não agrada a paroquianos» (Diário de Aveiro, 29 de Agosto de 2019).Casos como este são excelente ocasião para esclarecer valores ou razões escondidas, concorrendo para o crescimento espiritual de todos (não só dos paroquianos). Por outro lado, valorizaria o ideal do «grupo perfeito» de que já se falou «à quarta feira»:É difícil saber ouvir, saber responder, saber concordar e saber discordar – e por isso precisamos de bons exemplos e bom treino. Recorrendo de novo a um antiquíssimo provérbio filosófico: «amicus Plato magis amica veritas» («sou amigo de Platão mas mais amigo da verdade»).

Esta «dança dos Párocos», se em boa «coreografia»,impede o cheiro a mofo e a «cristalização» num lugar ou tarefa – como se os artistas ficassem colados ao lugar. Também evita uma espécie de «idolatria» dos bons líderes (como podem ser os sacerdotes bem formados).A vida ensina que não devemos «prender» as pessoas que amamos; e a saber interpretar o sentido das «grandes separações», incluindo aquela «grande separação» em que passamos o testemunho da vida.

Os primeiros discípulos de Jesus Cristo não percebiam o porquê de muita coisa dita ou feita pelo seu «Coreógrafo» – mas perguntavam e discutiam, obtendo por vezes a resposta de que «a seu tempo» compreenderiam as razões desconhecidas. Se  não tivessem motivos para acreditar na autoridade de quem lhes prometia «explicar a seu tempo», não teriam tanto sucesso no «espectáculo de Pentecostes» – em cena já lá vão dois milénios, embora o estilo e qualidade de «palcos e actores» tenha muitos altos e baixos.

Ninguém anda sempre na mesma escola, mesmo se conceituada. E muitas vezes é saudável mudar de local e até de estilo de trabalho. Para bem de quem parte, de quem fica e de quem recebe. O que também aviva a consciência e sentimento positivo de que este mundo é um palco de teatro. O melhor actor é o que mais se treina e não atropela as «falas» dos outros. Quantas vezes, aquele que deixa mais e melhor impressão é apenas um «actor secundário»:aparece menos, mas a ele se deve, mais do que a muitos outros, o sucesso do grande teatro da vida.

Saudades? O citado soneto de Camões não evita um final pessimista: «do mal ficam as mágoas na lembrança – e do bem, se algum houve, a saudade». Mas não será a saudade a expressão intensa do nosso permanente e profundo desejo do Bem? E não deverá a saudade motivar-nos para criar um mundo cada vez mais justo e agradável?

Nem nos podemos ficar pelo queixume final do Poeta: que o tempo «não se muda já como soía». É que todos nós temos a tentação de só «votar» naquele tipo de mudança a nosso gosto ou a que estamos habituados…

Contudo, seria grave erro provocar a mudança pela mudança. Não corramos o risco de «deitar fora o bebé com a água do banho», ou de provocar uma futura catástrofe devido à preguiça e comodismo, que não se dão ao trabalho de pesar as consequências.

Na verdade, se não ensaiamos a «coreografia dentro de nós», o grande espectáculo não corre bem. Valha-nos o «grupo perfeito», para discutir, com realismo, a organização de «coreografias» ao mais alto nível artístico.

Uma boa coreografia tem este encanto: movimento vertiginoso e súbita forma de estátua combinam-se para nos deixar o saudável sentimento de que, no palco da vida, tudo – na natureza, na amizade… – se pode transformar em beleza sempre nova e sem nunca deixar de surpreender.

Aveiro, 05-09-2019

 

  Página anterior Página inicial Página seguinte