Liturgia pagã para o domingo do Mistério de Deus
(vulgo «da Santíssima Trindade») 7 de Junho de 2020.
Num dos livros do escritor Mia Couto, aparece um
velho que dizia: «Olhem que falar de Deus é como segurar um ovo na
palma da mão. Se não damos atenção, deixamo-lo cair; e se o
apertamos com força, acabamos por o esmigalhar».
Neste domingo, os católicos em especial festejam
«terem alcançado» um verdadeiro «esquema de Deus»: o estranhíssimo
conceito de uma «Trindade que é Unidade indivisível». Porém, se o
achamos ridículo ou que nada ganhamos com o esforço de falar de
Deus, deixamo-lo cair; por outro lado, se o queremos prender com
todos os grampos da lógica humana e se o enfiamos no
colete-de-forças dos nossos conceitos e imagens, de certeza que fica
esmigalhado.
A razão humana não se poupa ao esforço fantástico
de desbravar caminhos entre o ser humano e Deus. Teima em falar de
Deus, mesmo que ache um assunto sem utilidade alguma ou até
irracional, impossível de esclarecer. Todavia, Deus baila-nos na
cabeça, como uma daquelas cantigas que não conseguimos deixar de
trautear. E quase sem nos darmos conta, lá vamos rascunhando ideias
e imagens de Deus, embora sabendo que dele é impossível fazer
imagem.
O dogma da «Santíssima Trindade» ou «Deus trino e
uno» só ficou formulado no séc. IV e a festa litúrgica foi introduzida
no séc. XIV. É fruto de legítima e enriquecedora especulação
filosófico-teológica. A preocupação central dos primeiros pensadores
cristãos terá sido a de entender «como» se pode atribuir a Jesus um
«estatuto divino». Como fenómeno religioso, presente em quase todas
as sociedades desde os tempos antigos até hoje, enquadra-se na
tendência a divinizar o Herói. Usando termos correntes, responde à
necessidade arquetipal de encontrar «o portal para o divino». Muitos
rituais populares e mais ou menos geradores de estados de transe
seguem essa linha.
Convém não ignorar que as causas e
consequências deste dogma são reflexo de perturbadores e até graves
conflitos religiosos internos e externos, englobando cristãos,
judeus e muçulmanos. Por vezes, este dogma chega a ser hasteado
como bandeira provocante da «única religião» a atingir a verdade
perfeita e o perfeito contacto com Deus…
(«O nosso Deus é trino!» Assim começaram algumas
homilias).
Estamos perante o esplendor humano da reflexão sobre
a experiência de Deus. Mas a pretensão de expor «a lógica interna»
de Deus desde toda a eternidade… sobre a «relação de Deus consigo
próprio» a modos de quem expõe a vida íntima de alguém… não pode
ser mais do que especulação do mais alto pretensiosismo e até
arrogância – se queremos impô-lo como dogma.
Mistério provém do radical indo-europeu «mu»,
imitativo de um som inarticulado. Daí provêm palavras como «mudo» e
«murmurar». Como noutras línguas, prevalece o sentido de
«silencioso» e de produzir «sons imperceptíveis». Como podemos
esquecer os benefícios do silêncio?
Seria mais honesto celebrar festivamente a atracção
pelo mistério divino. Só este é que é verdadeiro mistério, Seria a
festa ao Deus da Vida (que não é «estraga-vidas»).
A Bíblia (como todos os escritos nucleares de
diversas religiões) não se preocupa com definições de Deus, mas sim
com enriquecer e tornar atraente a experiência do encontro com Ele.
E o próprio ser humano, «à semelhança» de Deus, participa do mesmo
mistério: por isso, na sua plenitude, «não cabe» em fórmulas
psicológicas, sociológicas e muito menos estatísticas. À semelhança
de Deus, só «esmigalhado» é que encaixa nesses conceitos ou em
anti-humanos programas político-económicos.
Afinal o nosso desafio é saber levar dois ovos – um
em cada mão…
Aveiro,
10-05-2020 |