Fui encontrá-los numa aldeia do Minho interior. Tocavam «Foi aos
pastorinhos» às meias horas, acrescentando o «Avé de Fátima» às
horas cheias.
Que maravilhosa experiência de comunidade! Aonde o som deles
chegasse, toda a natureza, pessoas e animais, toda a movimentação e
trabalho, tudo parecia embelezado e mais unido.
Dizem os filósofos que a Beleza é o esplendor de tudo o que existe.
Precisamos de sons, de música, de arte, capazes de transmitir a
beleza e harmonia dos desejos mais profundos.
Num dos dias, de manhãzinha, após o silêncio seguido ao Avé, um sino
suave e plangente uniu a população do seu domínio à volta da dor de
quem chorava a grande partida de alguém amado. E também nos
sentíamos unidos a quem assim partia. A dizer a verdade, aquele
falar do bronze abria a dimensão aprazível da união entre todos nós,
a dimensão do esplendor da vida total.
Estava na minha aldeia natal, quando fechei os olhos a meu pai.
Tinha 35 anos e ele 84. Vira partir a minha mãe aos 25 anos. Então,
ainda era jesuíta (não cheguei a sacerdote) e toda a gente me
invejava pensando que a minha formação espiritual me daria uma força
superior. Pondo a dor entre parênteses, reconheço que enquadrava
mais calmamente o fenómeno da vida nas suas fases mais críticas. Mas
na hora do meu pai, já depois de vários anos a viver longe dos meus
sinos de bronze antigo, dei por mim ansioso por ouvir dobrar o sino
da igreja. Era o doce adeus de toda uma comunidade em harmonia com a
minha Igreja e com toda a vida espiritual da Humanidade.
Lembrava o som sagrado que faz parte dos rituais místicos de várias
religiões, em que todos somos levados a um rítmico abraço
espiritual.
A beleza de um sino e da sua voz como que repete o convite ao
«grande banquete da Sabedoria» dos livros sapienciais da Bíblia
hebraica. Um convite a saborear aquela Beleza tão perfeita e
incriada, que S. Agostinho lastimava ter vindo a conhecer tão tarde
na vida.
O som do sino, especialmente o de bronze antigo, não obriga ninguém:
convida. Sem forçar: penetra-nos mansamente e acorda outros sons
harmónicos dentro de nós, que apontam o caminho do que vale mais a
pena.
Fiquei a pensar naquelas crianças obrigadas, por vezes sob ameaças,
a marcarem presença nas igrejas, sem que os adultos pareçam ao menos
reconhecer, admirar e amar a beleza desse «tempo e templo» de união
– um «corte» especial no espaço-tempo (como diz a etimologia), para
melhor meditar e reflectir sobre os cuidados a tomar para bem
vivermos na «grande casa comum». Nessa grande casa, onde precisamos
de nos unir também à volta de casamentos, partos e baptizados –
pensando seriamente no que vale a pena dizer e fazer, para que tudo
corra bem e seja bom para os actores do momento e para quantos se
comprometem com os parabéns.
Nas cidades, não será possível dar corpo aos símbolos da união
aprazível e frutuosa? Nas aldeias, as famílias foram-se juntando sob
a atraente e protectora palavra dos sinos da igreja. Outras vezes,
os sinos é que foram morar com essas famílias, quais bons
samaritanos. Cumprindo o aforismo dos antigos romanos «cujus
regio ejus religio»: respeitar (e compreender) a religião de
cada país é um dever humano. E aqueles que vão chegando de outras
regiões espera-se que não fujam ao diálogo, aprofundando os valores
da comunidade. A voz deles só será sinal da Beleza e da harmonia, se
também calarem no coração de outras formas de viver a sério.
De certeza que as freguesias urbanas descobrirão aprazíveis maneiras
de fomentar encontros enriquecedores para os fregueses que
livremente vão aparecendo. Fregueses – palavra que historicamente
significava, de acordo com a formação etimológica, «filhos da
Igreja» (filingrês). Fregueses que só o serão a sério se forem
delicados como a voz dos sinos. Sem impor nem exigir. Praticando o
tal grupo perfeito a que frequentemente tenho aludido: perfeito, no
sentido dado pelo filósofo Dewey, não porque todos pensem ou finjam
pensar igual, mas sim porque se dá a voz e atenção a cada qual. Se
não houver diferenças de idade, de sexo, de estatuto, de
experiências diversas, pode ser um grupo agradável mas diminutamente
produtivo. Não cumpre os requisitos do grupo perfeito.
Os sinos de bronze antigo acordam a Beleza, porque foram feitos com
muito trabalho e cuidado. E com ela nos sentimos mais unidos em
qualquer momento da vida. Mais unidos, somos mais fortes. Mais
fortes, podemos levar cada vez mais longe a Beleza que pode brilhar
em todo o mundo e em toda a vida.
Aveiro, 30-09-2020 |