A ideia de épocas «críticas» alternando com épocas
«estáveis» começou a ser mais estudada nos princípios do século XIX.
O tempo é «de crise» quando sentimos intensamente que se põe em
causa a mundividência e estruturas sociais anteriores e se procuram
respostas mais satisfatórias. Nada mais instável do que a vida.
Os romanos, na linha dos gregos, prestaram culto à deusa Fortuna,
conscientes de que «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades... Todo
o mundo é composto de mudança», como poetizou Camões. O nosso culto
do Fado será também a história do destino, escrito pela
caprichosa Fortuna…
A vetusta história da China sublinha a alternância
dos ciclos unidade e pluralismo, ordem e desordem, progresso e
decadência. Esta alternância também é simbolizada pelo Yin (ciclo da
passividade e sociedade «em paz») em oposição ao Yang (dinamismo,
acção).
Já na história judaico-cristã, esta alternância é
menos relevante: o ponto mais alto da Humanidade é fruto duma
evolução contínua, claramente orientada para a plenitude, para o
«ponto Ómega» – embora através de uma história dramática e por vezes
trágica.
Uma sociedade em crise de valores (presentes em todas
as dimensões da actividade humana) estaria, portanto, numa «crise
aguda» de actividade e pensamento criativos, pondo em causa as
estruturas passadas, entendidas como estáticas. Porém, o Yin e o
Yang não representam dois ciclos necessariamente sucessivos mas sim
concomitantes, «jogando» continuamente. Os breves anos de cada
geração é que não permitem suficiente experiência ou visão geral
deste «drama».
A sociedade, sobretudo quando se sente em crise de
valores, não pode perder a consciência da «espiral da vida»: nunca
estamos parados, nascemos com a necessidade de objectivos e de um
"grande objectivo" que dê sentido «a tudo isto». Muitas vezes,
parecemos andar para trás... Na verdade, se continuamos em movimento
na busca do "grande objectivo", o próprio mal nos espicaça para o
bem. «Quem tropeça e não cai dá um passo em frente».
Parece que «foi pior a emenda que o soneto»? Mas a
emenda da emenda já pode ser muito melhor que o soneto… Não podemos
avaliar um acto nem um tempo histórico pelas suas consequências
imediatas, como não podemos ter a pretensão de ver e compreender
todas as causas. Aquilo que temos, aquilo que nos rodeia, as
instituições da sociedade... por muita coisa boa que aí vejamos,
geram sempre descontentamento. Queremos mais. É aquele querer
insaciável, aquela contínua insatisfação. É da nossa natureza. É a
força primordial do Desejo.
Sem dúvida que é desencorajante sentir a distância
entre “o grande objectivo” e a realidade. Se esquecemos a «espiral
da vida», ficamos no prazer imediato, na resposta mais fácil, nos
jogos de azar (que proliferam nos “tempos de crise”). Drogamo-nos
para não pensar nos “valores inquietantes” – que são os valores na
linha do “grande objectivo”: justiça, solidariedade, qualidade de
vida, beleza, liberdade, realização pessoal, amor... mas não tiramos
proveito da insatisfação da vida: ficamos pela satisfação infantil
do que dá prazer, aqui e agora.
Há poucas dezenas de anos, um estudo em vários países
do mundo mostrava o impasse nas polémicas “aulas de moral”. Como
defender a honestidade, se só vence na vida quem é desonesto?
Defendemos a vida – e matamos; defendemos a saúde, e servimo-nos do
trabalho dos outros em condições ignóbeis...
Estes problemas são agravados pela “velocidade” da
civilização técnica, que não deixa tempo para pensar. E somos
rodeados por mensagens perturbadoras, angustiantes até, e ao serviço
de interesses egoístas – que não do bem comum.
A etimologia de crise é justamente a mesma de
«crivo»: momento de joeirar, de pensar. Afinal de contas, é um
momento alto da história humana: só depois de nos mudarmos para a
casa tão cuidadosamente construída, é que reparamos em muitos
defeitos e até erros de construção. A «espiral da vida» representa o
viver de todos os seres humanos como uma trepadeira à volta de um
tronco sólido: mas ora fica pendente do tronco, ora sobe ora desce,
ora se enovela, ganha feridas e até deixa cair partes secas… A culpa
será de quem cai? Será dos grandes veios de alimentação? Será de
cada pequenina veia mesmo ao lado?
Quando descemos ou nos afastamos muito, corremos
perigo. Mas também ganhamos experiências novas e novas visões da
vida – que nos dão mais força e sabedoria para subir mais alto. O
que importa é aproveitar o inverno para contar e ouvir as aventuras
de cada qual.
Quem tem culpa da crise de valores?
Aveiro, 07-07-2019 |