O Príncipe do Egipto

Sim, é o justamente célebre filme animado de Spielberg (1998). A qualidade artística favorece sempre a melhor meditação.

A história de Moisés tem sido contada e ilustrada vezes sem conta. Olhando para tantos anos atrás, que impressão é que mais ficou?

O Príncipe Moisés expôs à sua nobre família, olhada como divina, quanto sofria perante o contraste entre a magnificência e conforto em que vivia e o sofrimento do povo a que realmente pertencia. Porque deu espaço à voz da consciência e a deixou amadurecer dentro de si, tomou a decisão que lhe pareceu mais justa e que fez dele um «herói» – dedicando-se ao projecto de Yaweh pela salvação do seu povo desprezado e cuja história se tornou símbolo da aventura humana «à meia volta» com Deus.

Acomodar-se é grande tentação. A gente até se acomoda ao sofrimento e segregação. E quem tenta lutar contra arrisca-se a sucumbir perante a submissão e inércia dos demais. Já será bom partilhar da dor. Porém, facilmente se passa a culpar os outros quando se cai em desgraça.

Muitas vítimas nem conseguem ter consciência de que o são: «apenas sofrem»  – e ninguém lhes penetra o sofrimento. Na medida em que são pessoas e sentem a sua identidade, guardam o segredo da melodia que lhes é própria.

A grande força do amor é reconhecer a grandeza do mistério do outro, a beleza da melodia emergente do segredo e, sem desvalorizar as melodias aparentemente mais simples ou mais estranhas, construir com elas a força poderosa da harmonia – e perseverar contra toda a esperança.

Se uma grave crise nos afecta, seja a nível do pequeno grupo, seja a nível do povo inteiro com que nos identificamos, facilmente somos levados a pensar que o grupo ou o povo inteiro está sob maldição. Como o “povo escolhido” se sentia reprovado por Deus e até amaldiçoado. Para cúmulo, a desgraça parece alimentar a riqueza, o bem-estar e o poder da minoria florescente à nossa volta. Mesmo  aqueles que, por mérito ou nascimento, sobem ao nível dos «bem instalados» facilmente abafam a consciência e possível inquietação pela sorte dos menos protegidos. Como que procuram justificar que são os únicos a «merecer» a melhor qualidade de vida – cabendo aos “humildes” a condição amarga: «senhores» e «escravos». O mais triste é que ainda hoje, em demasiados lugares, se pode contar a mesma história.

Ora qualquer pessoa, para viver, tem que sentir a sua dignidade respeitada, independentemente do grau de riqueza, de profissões, religiões, facções políticas… Quando a sociedade inteira tiver consciência activa desta dignidade, desaparecem “senhores” e “escravos”, e todos se empenham na luta contra o sofrimento de quem quer que seja.

Também é verdade que o bom  nível de cultura favorece a sensibilidade e disposição de meios para exercer a «liberdade de ser bom». Foi assim que um menino dos “escravos” se tornou príncipe do Egipto, amado e educado como tal.

Mas… e se o menino Moisés revelasse uma deficiência grave? Os Faraós lutariam pelo bem-estar e possível cura dele? E se em vez da princesa do Egipto a banhar-se no Nilo estivesse uma chusma de mercenários do dinheiro e do poder?

Cada ser humano é «um príncipe do Egipto»: num palácio ou num canavial, o futuro depende sempre de sermos amados ou ignorados e excluídos. Mais: durante toda a vida, cabe a cada um de nós descobrir «o príncipe do Egipto» escondido também dentro de nós. Podemos fingir não ver – talvez porque dá trabalho estar atento e desconfiamos das surpresas arrastadas pelo grande rio da vida.

(Entre parênteses: a nossa cultura aumenta a sensibilidade ao que é bom e belo?)

De vez em quando, temos que exercitar o calmo silêncio, condição para se ouvirem os apelos delicados mas perturbadores de berços de vida entre os canaviais do dia-a-dia.

Aveiro, 17-10-2019

 

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