Qual será «um dos oito pecados mortais do homem
civilizado»?Para o psicólogo Konrad LORENZ é o doutrinamento – a par
da entropia do sentimento, sobrepovoamento, devastação do ambiente,
competição do homem contra ele próprio, decadência genética, corte
da tradição e armas nucleares.
(NOTA: Utilizo a palavra doutrinamento para traduzir
o inglês “indoctrination” e o francês “endoctrinement”. Em
português, têm surgido as formas “endoutrinamento”, “endoutrinação”
(termos que eu desconhecia aquando dos meus primeiros artigos sobre
este assunto). Prefiro doutrinamento como forma mais simples
e mais portuguesa, além de mais de acordo com o sentido etimológico
do sufixo «mento» – reflexão mental).
O artigo anterior («Quem tem medo de Salazar?»)
serviu de mote para apontar o dedo à falta de seriedade e
independência com que falamos de assuntos sérios. De modo muito
especial, quando está em jogo a formação de espírito crítico nas
novas gerações e o esforço de darmos o exemplo: chamando bom ao que
justificadamente consideramos bom e mau ao que justificadamente
ajuizamos ser mau.
Para tanto, cada vez é mais necessário pôr as ideias
de quarentena («ao menos uma vez cada ano»…).E os actos nascidos
tanto delas como da divinizada (e bem!) liberdade de expressão. Digo
«e bem!» porque a plena liberdade de expressão só poderia ser
atribuída a um ser divino (não esqueçamos que «divino» significa
«luminoso»). Mas pensando nós Deus como o «totalmente outro» e
eternamente desconhecido, cabe-nos aproveitar as descidas funestas
para melhor subir a encosta que nos leva cada vez mais alto – cada
vez mais ansiosos por descobrir o que o próximo pico esconde. Bem
precisamos de quem nos anime a «nós pecadores», mas conscientes de
que «pecado» tem o sentido primordial de mancar, falhar, revelando o
sentido geral de inferioridade (presente nos vocábulos pé, pior,
péssimo…). Não é pois uma expressão condenatória, mas sim um aviso
de que a vida anda um tanto emaranhada.
Somos por natureza «animais sem fronteiras». E por
isso, temos que pôr em quarentena ideias e planos – para que a
empresa Razão, Imaginação &Sentimento se deixe orientar pelos sinais
do próprio deserto – a maravilha das dunas facilmente nos atrai a um
erro fatal. Não pode avançar quem fica agarrado à «sua» liberdade de
expressão.
Acontece que esta liberdade se tem vindo a confundir
com o atraente ruído dos carros de alta cilindrada conduzidos por
quem dá mais valor ao barulho do que ao objectivo da viagem (se é
que há) e para quem os outros só valem pela força dos seus gestos e
gritos de aclamação.
No segundo quartel do séc. XX, o biólogo Edward O.
Wilson pronunciava lapidarmente: «Os seres humanos são absurdamente
fáceis de doutrinar – até o desejam! Preferem mais acreditar do que
conhecer».
O verbo doutrinar, de que deriva, tem o
sentido comum de «instruir numa doutrina, ensinar, instruir,
catequizar». Por sua vez, doutrina é vulgarmente definida
como «conjunto de princípios em que se baseia uma religião ou um
sistema político ou um sistema filosófico»; e ainda «erudição,
norma, disciplina, instrução, modo de pensar, catequese religiosa».
Contudo, sempre que se analisam situações de
transmissão, comunicação... aparece o doutrinamento como perigo
iminente. E de facto, a pessoa que fala ou expõe (e tradicionalmente
num estrado)dispõe de situação propícia para valorizar o que vai
dizendo, preocupando-se mais com “vender” a sua opinião do que com a
procura da verdade. É o doutrinamento no mau sentido: imposição das
ideias (de um educador, de um gestor, de um político, de um
sacerdote...) a todo o custo, eliminando as possíveis razões
contrárias.
Por isso, se os ouvintes não utilizam a força da
razão de que dispõem, caem na atitude acrítica de permeabilidade à
informação, descansando sobre a força ou autoridade alheia.
O sentimento, muito embora possa ter um papel
preponderante no conhecimento, próximo da intuição, facilmente induz
a aceitar como racionalmente válido aquilo que não passa de
apresentação atraente: a estética, a arte, o encadeamento das
ideias, a beleza e imponência de um universo ordenado... não raro
usurpam o lugar de uma análise cuidada, paciente, imparcial
(virtudes da razão). A própria objectividade só merece um pedestal
se cumpre a exigência racional de ser submetida a contínua
fundamentação, persistente e honesta (sem a qual não haveria
progresso científico). As técnicas fraudulentas abundam nas
demagogias.
Que há conteúdos mais facilmente doutrináveis, é
notório: a política, a religião, a estética, a própria história... e
sempre que o sentimento ou interpretação subjectiva têm lugar
relevante. Quem queira impor as suas teorias elaborará um brilhante
«curto-circuito» de coerência racional, que levará muito a peito
defender. Mas quem procura a verdade é consciente de que essa
«sólida estrutura» só é verdadeira na medida em que for reconhecida
como provisória: caminhamos sem fim para a Verdade – que orienta o
nosso desejo e o cuidado em pesar o valor dos passos que damos.
É natural e normal encontrar uma instituição ou
alguém, cujos conhecimentos e sabedoria são justificadamente
reconhecidos (atenção: não se trata de diplomas!), de tal modo que
nos sentimos dependentes dessa força e autoridade. O perigo surge
quando esse alguém me quer vencer, mesmo sem convencer. Nesse caso,
dá-se um “encanto” da mensagem sobre a força da razão ou da análise
crítica. As técnicas de persuasão ou de publicidade são disso
exemplo.
Seja dito, assim, que a situação de doutrinamento é
característica do ser humano, é a marca da nossa limitação como
seres racionais. A comunicação não é transparente, mas a consciência
do limite já nos liberta, interiormente, do próprio limite. Por
outro lado, pela análise da situação, encontraremos o melhor caminho
para a verdade.
Diz-se também que é natural a qualquer tipo de
militante defender acaloradamente as suas ideias e ser até
“missionário”. E de um militante comunista que fale de religião, ou
de um católico que fale de comunismo, não só não se acha natural
como será de desconfiar. Provavelmente, esta suspeita assenta num
velho instinto de precaução. Situações concretas como estas, e em
todos os níveis, podiam-se multiplicar.
Estamos perante a problemática da “missionação”, onde
se podem conjugar a fidelidade a certos conteúdos e a repulsa para
com outros.
Todo o homem pode ser «missionário» no sentido em que
toma consciência de que deve anunciar algo de importante. A certeza
do missionário é fruto da vivência da unidade entre a verdade e o
bem. Ganhou a consciência de que lhe compete (aqui pode inserir-se o
sentido religioso de chamamento) realizar-se segundo um certo modelo
(ideal concretizado), que é simultaneamente a sua forma de se situar
no mundo humano e realizar uma obra com influência nesse mundo.
O que interessa, para o missionário, é que os outros
o escutem e se convertam às ideias que lhes são anunciadas. Ideias
tão importantes que devem ficar bem vincadas, de tal modo que não
sejam facilmente destruídas por ideias contrárias. Todas as dúvidas
serão demolidas – e oxalá que a arte de o fazer não inclua
violência. As próprias razões contrárias serão «convertidas»,
sofismadas até, ganharão novo sentido e reforçarão a sua mensagem.
Quanto às ideias perigosas, afastá-las-á em bloco, fugindo a
qualquer análise honestamente racional.
Atenção, porém, a que existem muitos missionários
genuinamente bem intencionados, apaixonados por ideias dignas da
maior consideração. A técnica usada – a de doutrinamento – é que
pode deitar tudo a perder.
De qualquer maneira, dá-se uma limitação da
capacidade crítica do ouvinte, correlativa, aliás, à visão limitada
do “missionário”».Pior será, se o ouvinte se “converter” porque “lhe
dá jeito”.
Reconheçamos os nossos pecados e guardemos a
quarentena…
Aveiro, 03-03-2021 |