Chegámos à conclusão de que os nossos feitios não se
davam e que nenhuma das partes tinha interesse em prolongar tão
sofrida paciência. Assim foi que abandonei a Companhia de Jesus,
depois de 15 anos em que ela me enriqueceu espiritual e
intelectualmente. Tudo a bem, mas não sem dor da minha parte. Por
muito que o famoso voto de obediência me incomodasse, gostava
daquela companhia. E quantos amigos ganhei durante esses anos!
Aliás, continuo a tirar proveito desse passado. Enfim: um divórcio
bem sucedido.
Foi nas meditações de quem entra numa nova vida (em
1967) que me dei conta do valor dos meus votos; e que, entre todos,
o mais precioso e fundamental para uma vida 100% humana era o voto
de pobreza.
Antes do divórcio, não tive razão de muitas queixas
quanto ao voto de pobreza. Não faltaram férias, passeios (sobretudo
a pé, o que me facilitou o serviço militar), livros, filmes… E o
tempo era tão bem aproveitado que não dava para desejar coisas
próprias da sociedade de consumo. O que mais me terá custado foi não
ter a pasta de dentes ou sabonete preferido e ver (só nos primeiros
anos) o meu querido relógio de pulso a ser usado por outro colega. O
desprendimento em pequenas coisas.
A pobreza era uma constante ao longo de todo o dia,
no que quer que fizesse. Gerava o desprendimento fundamental de
todos os benefícios ou qualquer vantagem pessoal decorrente das
acções. O que ocupava todo o meu esforço era fazer o melhor possível
aquilo que tinha a fazer ou que achava ser bom e (por que não?)
agradável de fazer.
Não precisava de ganhar dinheiro (que não faltava
para o que fosse conveniente): todo o ganho era ter contribuído para
um mundo com valores mais altos, o que incluía melhor justiça,
melhor organização social, melhor entendimento entre as pessoas
conhecidas ou totalmente desconhecidas, sem as avaliar pelo aspecto
físico, tipo de trabalho ou região de origem. Podia ter essa
liberdade espiritual porque não nos faltavam os meios necessários
para uma formação de topo: desde viagens de formação a uma vasta
gama de material de apoio mais o incentivo de mestres e
companheiros.
Era a concretização do riquíssimo sentido de
«pobreza». O «dinheiro» não é um Deus mas o meio mais flexível de
investir no desenvolvimento de cada pessoa, o que inclui o ambiente
mais agradável possível – que, por sua vez, permite a capacidade de
investir no pleno desenvolvimento da sociedade.
Ao longo da vida, como professor funcionário público,
vi bem como igual vencimento não indicava igual «sentido da pobreza»
a que me refiro. E reparei melhor como a ganância de dinheiro
corrompe e mesmo impede a elaboração e execução de projectos movidos
por esse espírito de pôr em primeiro lugar o enriquecimento da
sociedade e portanto das potencialidades e bem-estar de cada pessoa.
E também que um projecto tem que ser cuidadosamente elaborado, com
discernimento aplicado a todos os factores intervenientes, dando
muita importância aos efeitos secundários (onde se esconde o
dinheiro egoísta).
E mesmo que o projecto não seja exequível, deve
continuar a ser uma fonte de ideias e informações. Projectos como
deve ser custam dinheiro… e por isso não podem ser deitados fora só
porque não são «politicamente correctos» ou porque são «demasiado
correctos»...
Qual foi o projecto de Jesus? Para já, a crer nas
histórias (meio lendárias) do nascimento, mostrou, pela sua vida,
que não é preciso «nascer rico de dinheiro». Então, rico de quê? A
resposta envolve a história da Humanidade e a responsabilidade
cultural de todas as sociedades. Ainda hoje se discute se o Reino de
Deus pode ter um sentido preciso. Vale a pena meditar por que é que
o papa Francisco fala tanto de pobreza, como condição absoluta para
uma Igreja credível, assente na autoridade (que tem a mesma raiz
indo-europeia de aumentar) e não no poder ou grandiosidade. Sem
«espírito de pobreza», ninguém está apto para dedicar a vida a
cuidar do desenvolvimento e investimento do que é ser religioso.
E que estas linhas se transformem num cartão de BOAS
FESTAS.
Aveiro, 13 de Dezembro de 2021
|