São aquelas que não sabem ligar o sagrado ao profano.
E porquê?
Porque faltam «padres cultos e capazes de dialogar»,
como diz com toda a naturalidade Lídia Jorge (12 de Agosto).
(NOTA: utilizo «igrejas» não no sentido usual de
templo ou instituição hierárquica mas como comunidades locais dos
crentes em Jesus Cristo. E baseio-me livremente nos vários artigos
relacionados com Dimas de Almeida, publicados recentemente no
7MARGENS).
«Cultos» e «dialogar» aparecem entre aspas: apontando
o significado especial, neste contexto, de cultura e capacidade de
diálogo. Pois aplicam-se a quem cabe a responsabilidade de manter o
contínuo dinamismo característico de qualquer religião autêntica.
Uma pessoa «autêntica» não se quer enganar a si
própria nem enganar os outros. A religião é autêntica quando se
fundamenta no reconhecimento de que os seres humanos se questionam
sobre o sentimento de se encontrarem ligados («ligar» é o étimo mais
provável de religião) a uma realidade que está para além do universo
alcançável pelos diversos níveis de conhecimento, da experiência
comum e científica.
É o clássico tema do «sagrado e profano». Sagrado
deriva da raiz indo-europeia sak, cujo sentido geral é separar.
Também dela derivam «ciência» e «esquizofrenia» – o pensamento
profundo e um modo patogénico de «catalogar» a vida. Por outro lado,
o «profano» significa «estar diante do templo» («fanum» em latim),
portanto separado do espaço sagrado (e «templo» deriva de um verbo
que significa cortar, criando um lugar separado).
Separação parece assim um conceito central à
religião: que tem de ser pensado e que por outro lado se pode tornar
doentio.
Mas só concebe a separação quem experimenta a
ligação. Até porque a separação característica do sagrado só pode
ser expressa por palavras tiradas da nossa experiência. E a
expressão será tanto mais profunda quanto mais profunda for a nossa
inserção no mundo em que vivemos. Doutro modo, a experiência
religiosa, em que se sente a força de uma realidade totalmente
diferente, corre o risco de se tornar patológica. Muitas
experiências místicas são classificáveis como tal.
Por isso, vale a pena meditar este slogan:
«contemplação na acção». O equilíbrio exige a ligação com «o nosso
mundo». Em qualquer religião, «encontramo-nos diante do mesmo acto
misterioso: a manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma
realidade que não pertence ao nosso mundo – em objectos que fazem
parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”» (M. Eliade: O
sagrado e o profano).
Ligação que se manifesta no tipo de organização das
comunidades e na riqueza e dinamismo das actividades culturais, sem
esquecer a técnica do que eu chamo «grupo perfeito»: em que todos
ouvem e em que cada qual se sente livre para falar, finalizando com
a consideração das razões mais válidas.
Se tomarmos o exemplo de Calvino, notamos que o alto
grau de experiência religiosa não fez dele um «sacerdote»
oficialmente, mas uma pessoa que, através de um aparentemente
simples sistema de organização, procurou um modo favorável ao
enriquecimento da experiência religiosa. Em vez de uma hierarquia ao
jeito dos históricos sistemas de poder (pretensamente fundamentados
numa espécie de revelação divina), propôs apenas assegurar a
qualidade da pregação, ensino, organização da comunidade e de outros
serviços na linha da natureza humana, segundo os dons pessoais de
quem estiver disposto para o serviço de nos aproximar de Deus.
Preocupou-se com a ligação do sagrado e profano.
Como disse Bonhöffer, «Deus mistura-se com a História
nas formas mais inesperadas». Mas a procura de Deus é tanto mais
credível quanto mais aprofundarmos o conhecimento e experiência da
nossa História.
Valia a pena reflectir sobre a famosa experiência dos
«Padres operários», que levantou problemas à organização eclesial e
à pastoral. Está em causa o sentido de vocação: vários padres
testemunharam como avocação sacerdotal se esclareceu e enriqueceu,
ao viverem como trabalhadores normais, alugando um quarto numa casa
de família, que por vezes ignorava conviver com um padre. Eram
vistos como homens bons, dedicados ao trabalho e à qualidade das
relações humanas. Suponho que em muitos casos tiveram a experiência,
padres e leigos, de como a aventura da vida humana se enriquece por
meio da ligação entre «o sagrado e o profano».
Muito importante terá sido a imersão natural no mundo
feminino. Faz-me lembrar a carta de Maria Lía enviada ao papa
Francisco sobre o papel das mulheres na gestão da Casa Comum e
particularmente na «Igreja com os dons que o Pai Criador lhes deu»
(publicada em 7 MARGENS a 25 de Março):
As ideias-chave estão expostas com simplicidade e
vigor tipicamente «franciscanos». Só duvidei até que ponto propunha
a participação feminina no corpo de professores e formadores de
futuros sacerdotes.
Preferia porém alterar a frase em que ambicionam
«Sínodo do Povo de Deus com uma representação proporcional do clero,
consagrados e consagradas, e leigos». Proponho a inversão da lista
dos representantes: leigos – consagrados e consagradas – clero.
Porque considero esta a «progressão natural» a ser
defendida. Fortalece e protege a responsabilidade dos Leigos em
criar ambiente propício às vocações «espirituais», ao reconhecimento
do seu valor e ao discernimento das verdadeiras vocações. Aliás,
qualquer actividade neste mundo devia poder partir desta base.
Não se tem levado a sério o conceito de vocação, que
define o caminho em que cada pessoa se vai descobrindo realizada,
dando passos livres e racionais. As qualidades e responsabilidades
principais requeridas para cada tipo de «serviço religioso» estarão
a ser apresentadas claramente, dando sempre a maior atenção possível
ao sentido vocacional de qualquer candidato? O pragmatismo,
evidentemente, obriga a «desvios» vocacionais; e a autenticidade
descobre frequentemente que a realização pessoal exige outro caminho
– um processo que pode acontecer ao longo da vida inteira.
***
«Estamos a arriscar o futuro da Igreja e a sua credibilidade no
curto prazo» (Cristina Inigés-Sanz, em 7M, 10 de Agosto).
A trabalhosa vida de um sacerdote, sobretudo se
sobrecarregada com um papel administrativo (como os párocos, mas não
só), não pode esquecer o valor da História, da Arte e da Cultura em
geral, nem ficar alheia às suas expressões locais, que incluem a
religião popular. Quanta poesia é a melhor ligação com Deus – mesmo
ou sobretudo se não fala directamente de Deus?
Nem pode deixar de olhar criticamente para os grandes
problemas da civilização e da comunidade com que trabalha. Precisa
de saber falar sobre os «pecados modernos», destruidores da Casa
Comum e da Justiça – sem fugir a achegas políticas criticamente
equilibradas.
À frente da comunidade de fiéis, o sacerdote não sabe
tudo, mas deve saber falar e como abordar as atitudes cristãs que
importa desenvolver.
É complicada a formação para o serviço sacerdotal. E
por isso os leigos têm que ajudar na sustentabilidade de uma Igreja
credível e atraente.
Aveiro, 29-08-2021
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