Várias vezes repetia nas minhas aulas: «Herança + criatividade =
progresso». A todos nós, porém, de todas as idades e profissões,
cumpre reflectir sobre a qualidade da herança e da criatividade,
estimulando-nos uns aos outros para apresentar sem receio a nossa
opinião, contribuindo assim para a descoberta de novos valores ou de
aspectos desconhecidos. É o «grupo perfeito» de que já se falou «à
4ª feira» – e de que a família (ou equivalente) devia ser o exemplo.
Infelizmente, este grupo cada vez se reúne menos, por falta de
vontade ou porque a (in)justiça social torna impossível a
convivência e a experiência de discutir «o que vale a pena».
Ora é num ambiente de família que melhor se pode desenvolver o
sentimento religioso, essa delicada percepção de que o essencial não
está claramente perante os nossos olhos. Como também se descobre o
valor da segurança, dedicação e convívio, entreajuda, silêncio,
aventura, morte e rituais; e de que o amor verdadeiro não desaparece
com o sofrimento ou escuridão.
Esta experiência deveria prolongar-se ao longo do «ensino
obrigatório» (e não «suplício obrigatório»). As perguntas e
inquietações da criança vão sendo progressivamente mais elaboradas e
mais rigorosamente satisfeitas, através de comparações e de rituais
- como o de levar uma flor para entregar à mãe e outra para uma
jarrinha junto do retrato do avô que já morreu.
É
possível enriquecer o sentimento religioso da criança, sem lhe
encher a cabeça de fórmulas estranhas, facilmente incorrectas, e que
a criança não compreende. A «secura» ou «malabarismo» de muitos
conceitos «doutrinais» podia dar lugar a momentos de «história da
herança», a modos do ritual judeu da Páscoa, em que a «história da
salvação» é o sentido da vida entre perguntas e respostas. E as
leituras da Bíblia? Perdem muito valor se não forem adequadamente
contextualizadas e orientadas para estimulante convite a tornar o
mundo melhor. O texto da Criação do Mundo já é universalmente
reconhecido como exemplo do poder e beleza dos textos poéticos – a
que se poderiam juntar outros poemas, que falam às crianças…
Podemos alimentar a aventura de descobrir Deus em todos os momentos
da vida – mesmo todos, dos mais insignificantes aos mais
espectaculares: o mar, o sol, a montanha, o vento, a atracção
sexual, tempestades, campos de flores, todas as maravilhas da
natureza...
Quanto maior a aventura, mais precisamos do «refúgio» do «grupo
perfeito», para discutir o valor das novas e velhas experiências.
Neste ambiente, como em qualquer ambiente educativo, não se
«doutrina», não se impõem ideias a todo o custo – o que é falta de
respeito pela dignidade da pessoa humana.
Contudo, é sempre preciso levar a criança a ter certos
comportamentos e a decorar certas coisas: cá está o «torcer o
pepino» da última 4ª feira – mas de maneira «super»! Com o tempo, a
criança irá aplicando a sua própria razão, num clima de liberdade
(criatividade sem herança é libertinagem). E, com a ajuda do grupo
perfeito, irá descobrindo a razão das coisas e a maneira pessoal de
as compreender e praticar (é a criatividade baseada na herança). A
maioria dos conhecimentos e sentimentos terão que ser debitados "aos
bocadinhos" e até em regime experimental, para que possam
amadurecer.
É
o que eu chamo «doutrinamento técnico»: nas linhas de comboio de via
única, até os rápidos são obrigados a parar de vez em quando, em
pequenas estações. Não é para «fazer serviço de passageiros»:
ninguém entra ou sai. É para se cruzar com outro comboio ou para se
abastecer do que é preciso. Só com esta paragem (ou «torcidela»…)
provisória é que pode seguir a viagem em segurança.
A
educação religiosa da criança tem que ter muitas «paragens» – mas
nunca poderá ficar por aí!
Aveiro, 2019 |