O primeiro grande encontro com este grande amigo (que
nunca deve ter sabido da minha existência) ocorreu pouco depois de
eu começar a leccionar na Universidade de Aveiro, em 1976, através
do seu livro talvez mais famoso: On Being a Christian
(tradução do original Christ Sein, revista e prefaciada pelo
A.). Veio a ser a principal referência na dimensão religiosa da
minha tese de doutoramento Filosofia da Educação e Aporias da
Religião (1986). Pouco a pouco, pude saborear várias das obras
principais deste verdadeiro condutor do pensamento sem fronteiras
para a viragem do milénio, já com lugar de destaque no Vaticano II.
Tive o prazer deste frente a frente com uma pessoa
dotada de humanismo vibrante e de extraordinária inteligência:
sempre à escuta dos mais profundos problemas do grande mistério da
existência, do bem e o do mal e daquela Transcendência que só ela
pode ser percebida como o Sentido de todas as coisas – da alegria e
da dor, da vida e da morte, da criação e da destruição.
Sempre agradavelmente destemido, sabendo abordar
temas delicados. E pronto a reconhecer e enaltecer a riqueza e
fundamentação de pensamentos divergentes. Dotado de extraordinário
poder de síntese, frequentemente elaborava um sumarento resumo do
cerne das questões discutidas, não sem acrescentar oportunas
sugestões. Como acontecia ao realçar todos os traços de união entre
posições diversas e nomeadamente entre os vários sistemas
religiosos.
Como teólogo genuinamente humanista, defendia a
«teologia ascendente»: o discurso sobre Deus a partir do
aprofundamento da experiência humana. E as tradicionais verdades da
fé são criticamente discutidas no contexto dos problemas do mundo
actual e da mundividência sempre em evolução. Pois vivemos em
permanente interpretação dos nossos encontros com Deus.
Criticamente sensível às desigualdades sociais, com
particular ênfase no desconhecimento e desconsideração do mundo
feminino – sem o qual a sociedade fica gravemente amputada, como
ainda acontece na gestão e na pastoral da Igreja católica. O seu
trabalho interdisciplinar sobre ética global procura eliminar a
tensão negativa nas relações humanas em vários cenários, orientada
pela ilimitada sede de justiça que decorre das bem-aventuranças. As
leis não podem matar o espírito.
Nem hesita em trazer à verdade a violência,
perversão, culto do poder e do Dinheiro, que se cruzam com os mais
notáveis pensamentos e feitos da parte de muitos membros da Igreja.
Dogmas? Funcionam demasiado como silenciadores dos
pensamentos e atitudes divergentes, que presunçosamente se
apresentam como «pedras angulares», guardiãs e manipuladoras dos
sistemas conceptuais e das normas práticas. Mantinha-se calmo e
persistente lutador em defesa da linha profética, particularmente
manifesta no Judaísmo e no seu rebento missionário que é o
Cristianismo.
A pessoa de Jesus é cuidadosamente integrada no
tempo, não só no passado e presente da sua vida como também nas
imagens que dele se foram construindo ao longo de dois milénios. O
realce que deu a Jesus Cristo como continuamente interpelante revela
o mestre sempre novo porque interage com quem lhe queira dar o braço
– timbre de verdadeiro educador.
O sofrimento é outro grande mistério de todos os
tempos. Fere com mais intensidade quando nasce da maldade humana. Os
extremos do nazismo deixaram-lhe profundas amarguras mas ao mesmo
tempo suscitaram extraordinárias dissertações sobre o sentido da
vida, o que é ser humano e o que é acreditar em Deus, com todas as
dúvidas e estranhezas em permanente ebulição – e por isso em
permanente fundamentação. Só sendo fiéis à razão em exercício é que
nos podemos considerar religiosos. Dizia de si mesmo quanto
precisava de novo acto de fé, ao fim da caminhada de cada dia.
Muito me tocou a visão do sofrimento como
questionamento nuclear do sentido da acção humana, em que a resposta
é o combate efectivo contra as diferentes situações de dor e, com a
força do amor dedicado, procurar a alteração do rumo destruidor.
Tomando o sofrimento como aguilhão motivador de dedicação ao maior
bem-estar de cada ser humano, surge o sentido da morte do grão de
trigo que enriquece a Vida – a maior e imortal coroa de cada ser
humano. O facto de Jesus ter aceitado o fim trágico da crucifixão
coloca-o bem no centro da dor física e espiritual e garante o valor
da sua mensagem.
Nas palavras de outro sacerdote grande amigo meu
(Evaristo de Vasconcelos, SJ), a morte é «o meu próprio parto», em
que na dor renasço plenamente. De Hans Küng, ficou célebre a
expressão inglesa por ele assumida: Dying into God. A morte é
penetrar em Deus.
Aveiro, 07-04-2021 |