No texto anterior, o doutrinamento aparecia como
atitude ou vontade de impedir a todo o custo maneiras diferentes de
pensar. Nem os melhores argumentos podem abalar a crença do
doutrinado. Radica-se nele o medo de “abrir os olhos”, a preguiça
intelectual e dependência do doutrinador. Dá-se um atentado directo
contra uma característica essencial do Homem educado: a
insatisfação que levanta um contínuo porquê.
A libertação dessa venda nos olhos põe a descoberto
como a nossa força racional tem a responsabilidade de criar
alicerces com solidez dinâmica: provocadora de transformações que
superem o nível anterior.
Assim é que desde há muito comparo a vida de cada
pessoa a uma evolução em espiral: a cada momento, tentamos subir e
alcançar a plenitude do que mais profundamente desejamos e nos fará
felizes sem sombra alguma. E esse desejo profundo será como um eixo
ou vector à volta do qual rodopiamos.
Há quem prefira andar agarradinho a esse vector,
crendo que se tornaria feliz e perfeito mais depressa. Mas essa
obsessão não o deixa apreciar a paisagem, viver experiências novas,
relações humanas… sem tempo para sorrir e sem aventuras a partilhar.
Ou tem medo de se perder. Pior ainda, se é gente que apenas tem por
objectivo passar à frente dos outros – e se der jeito, transforma
os outros em “matéria descartável”.
De modo geral, porém, somos atraídos por aventuras
que nos desviam perigosamente. Se nos afastamos do campo magnético
do vector, é muito provável que nos percamos no vazio. Aventureiro
sem tudo o que é droga para a vida nem sempre terão a sorte de serem
recolhidos por uma boa nave espacial.
Com muitas ou poucas aventuras, a espiral da vida tem
uma peculiaridade: para quem nos observe e para o próprio, não
estamos sempre a subir: podemos voltar muito abaixo do nível
alcançado. Mas se o desejo não morreu, esta sensação apenas indica
que a riqueza das experiências vividas não está a ser devidamente
«digerida». Na realidade, estaremos a subir: em breve, a energia
acumulada nos faz subir com mais força e resiliência. Também se pode
aplicar o adágio: quem tropeça e não cai dá um passo em frente:
transforma a sua experiência negativa em sabedoria.
Será possível um GPS para a vida? Comecemos por dois
problemas: (a) se se pode falar de informação total;
(b) como se pode dar uma informação de modo a não cair no
doutrinamento.
A informação total é um ideal: seria o
conjunto de todos os sistemas científicos plenamente desenvolvidos
no seu conteúdo, ou o conjunto das formas de conhecimento. É
academicamente requerida para as “especialidades”, sectores de
informação bem definida. Mesmo assim, não há a certeza de se
cobrirem todas as relações, janelas e portas para outros campos do
conhecimento. Como ideal, implica permanente abertura inquiridora
quanto aos pontos cardiais, concretizada nas formas de
conhecimento.
As formas de conhecimento lembram uma
gigantesca rotunda com placas de orientação para todos os sítios.
Podemos conhecer bem apenas dois ou três, mas sabemos o nome de
todos os outros e a quem poderemos recorrer.
Pretende-se uma visão do mundo bem organizada, tanto
no que diz respeito ao passado como na projecção do futuro.
«Adquirir conhecimento é aprender a ver e a experimentar o mundo de
uma maneira que nos seria desconhecida, e a desenvolver o nosso
espírito da maneira mais plena» (HIRST, notável filósofo da
educação).
Vê-se aqui a grave responsabilidade da planificação
curricular e da introdução ao conhecimento em geral: apresentando os
aspectos que mais tipicamente representam o pensamento científico e
a sabedoria actuais, de um modo lógico e claro, e que suscite o
espírito curioso de novas e novas relações. Essa «introdução»
começará, portanto, pela compreensão do leque das formas de
conhecimento básicas (as tabuletas da rotunda), capazes de nos
encaminharem satisfatoriamente e com agrado. Não é verdade
que a etimologia de «Enciclopédia» mostra claramente o significado
de «cultura (e educação) em círculo»?
À educação que nos liberta pode-se chamar «educação
liberal»: depende das formas de conhecimento eficazes para iluminar
as alternativas que se oferecem ao sujeito. É pior não falar de uma
posição alternativa do que atacá-la – pois assim, ao menos, ouve-se
falar dela. Qualquer justificação, além de fornecer as razões pró
e contra, deve manifestar a hipótese ou pergunta fundamental: a
de que pode haver posições contrárias, igualmente bem fundadas ou
ainda melhores. O erro está sempre presente, pois mesmo o que é tido
como logicamente necessário depende de uma expressão sempre
limitada, não adequada plenamente. As formas de conhecimento básicas
impedem que sejamos instrumentalizados e vendados, na medida em que
nos dão o maior alargamento possível da consciência de estar no
mundo.
Porém, a espiral da vida encarrega-se de ir pedindo
novas perspectivas e reestruturações: exige educação permanente.
Se a educação é crescimento, parar de crescer é morrer. Se alguém
abandona o desejo de educação permanente, é porque já houve uma
falha na educação fundamental.
Trabalho de casa: Que forma de conhecimento será a
religião?
Aveiro, 08-03-2021 |