Evitar o doutrinamento das crianças dá trabalho. Por
um lado, necessitam de uma espécie de «catecismo elementar», onde
tudo venha explicado e estruturado de acordo com o seu
desenvolvimento. Por outro lado, esta cultura inicial e maneira
peculiar de olhar o mundo não podem ser prisão: pouco a pouco, de
acordo com o ritmo da criança, virá a escolha de um trabalho
personalizado e criativo. A criança tem que levar a sério as
prescrições da sua cultura, para adquirir a norma de levar a
sério o que escolhe fazer. De contrário, a timidez e o
diletantismo ir-lhe-ão limitar a liberdade e portanto a capacidade
de se realizar.
Como as sociedades organizadas necessitam de valores
comuns, a pedagogia do conhecimento e discussão é essencial. Não se
pode dar verdadeira comunicação entre pessoas se não ganham apreço
por comunicar – surge o doutrinamento quando não surge um novo
filósofo. Ser aberto a outras ideias, mesmo quando o que eu digo
parece certo e de extrema relevância, é aceitar também a minha
própria abertura. O outro é o estímulo da minha
transcendência, desperta-a, actualiza-a, e permite a diferenciação
entre verdades e a Verdade. Doutrinar é pois um isolamento não só do
outro como de mim próprio.
Para DURKHEIM, compete à sociologia dizer aos
educadores aquilo para que tende a sociedade; e aos educadores
compete ajudar os alunos na realização desses objectivos. Porém, a
escola, como grupo perfeito que deve ser, não pode limitar-se
ao seguimento da opinião pública: pelo contrário, pertence às
escolas conduzir a opinião pública. Em todas elas, desde as
“maternais” às “superiores”, os «mestres» serão a origem crítica
da opinião pública.
Deste modo, cabe aos professores agir como pessoas
educadas, suficientemente informadas para criticar as próprias
crenças e as do grupo social a que pertencem, demonstrando a
qualidade dos fundamentos dessas crenças e das alternativas que se
oferecem.
A esta actividade crítica prende-se a temática da
regionalização do ensino. Os valores próprios de uma região
integram-se em sistemas mais vastos, que relativizam os primeiros
–«relativizar» não implica inferiorizar determinada posição. Mas o
sistema de valores de um grupo social pode facilmente converter-se
num sistema isolante.
Nesta crítica dos valores, a escola ensina a não
esquecer os pormenores positivos de sistemas provavelmente
contrários; e que a condenação em bloco é frequentemente exemplo da
necessidade de bodes expiatórios, da figura má – e facilita a
manipulação do próprio bom senso, com toda a arte do doutrinamento.
A escola tem assim que se manter vigilante sobre si mesma.
As formas de conhecimento terão pois que ser muito
equilibradas, sem obstar à especialização. O aluno não fica limitado
nem pelas suas preferências nem pelas preferências dos outros:
coloca-se perante a polivalência da realidade.
Devo às longas viagens de comboio para o
estrangeiro a expressão doutrinamento técnico. Obviamente,
tomava sempre comboios rápidos – mas sempre havia paragens
inopinadas nalgumas estações secundaríssimas. Até que um dia, pedi
explicações ao revisor sobre a «ofensa» à rapidez e dignidade do
comboio. Ao que ele respondeu imperturbável: «Sabe, senhor, estas
paragens são o que nós chamamos paragens técnicas: não se
destinam a fazer entrar ou sair passageiros; é para descongestionar
o tráfego, tornando mais segura a viagem». E eu concluí: os
passageiros não podem pensar que é para ficarem por ali, ou para
entrarem à batota – o destino ainda vem longe, e precisa de ser
programado!
O doutrinamento técnico pode pois significar a
«imposição provisória» de conhecimentos e valores aceites
costumeiramente numa dada cultura (que se pode identificar com o
grupo familiar, o grupo escolar e até o grupo profissional). São as
boas maneiras, práticas religiosas, conhecimentos simples, técnicas
de bom senso... Quem “doutrina tecnicamente” tem que se preocupar
efectivamente com formar a criança ou o novo membro de modo a que
ela, progressivamente, seja apta para discutir e escolher,
abrindo caminhos novos. As crianças começam por aprender
«tradições»(entenda-se: aquilo que vale a pena ser transmitido) sem
compreender plenamente por quê. Mais tarde, saberão discutir a razão
de ser de muitas práticas. Por isso, o grupo significativo deve
preocupar-se com a justificação daquilo que “impõe” e ao mesmo tempo
deve dar exemplo de discussão e fundamentação do seu agir – mesmo
que as crianças não penetrem no raciocínio. Adquirindo deste modo
regras básicas, a criança forma o sentimento adequado para sustentar
a vida que irá escolher.
Honestamente: as noções do catecismo, sobretudo para
infantis, não podem ser dadas “de cima para baixo”: devem partir da
experiência própria das crianças. A inicial noção de Deus é
extremamente difícil, por razões psicológicas e filosóficas. Muitas
catequeses dariam razão a Freud, para quem a religião é uma neurose
colectiva – ou a inimiga da ciência. Mais vale começar pela
experiência da autoridade, da ordem, do amor, da beleza… e do
mistério – sem gerar ansiedade e sim o desejo de virem a conhecer
cada vez mais a maravilha de existir.
Aveiro, 09-03-2021 |