À luz da Páscoa: que celebra as dores e angústias da
nossa última cena no teatro da vida; o silêncio vazio da morte; e
finalmente a experiência daquela Luz simbolizável pelas auroras
boreais, em que as cores parecem brincar e fazer esquecer o negrume
da noite. Aquela Luz desejada por todas as noites humanas. E dei por
mim a pensar nos testamentos vitais. Mais exactamente, como eu
desejaria o cenário e actuação de todos os figurantes ligados à
minha última cena. Mais ou menos com este guião:
A janela panorâmica deixa-me ver parte da cidade e lá
longe montanhas azuis. Lutarei até ao fim pela beleza da vida humana
e da natureza. E a presença delas é estimulante. À minha volta,
todos sofrem, a seu jeito, a separação iminente. Mas sem esquecerem
como a própria morte reúne os vivos e como todos desejam uma
perfeita reunião “sem morte” (cf. meu artigo «E juntou-se aos seus
antepassados»).
Na sala ao lado, alguém recordará quanto eu gostaria
de que as reuniões de amigos e de Família terminassem com um «e que
estejamos sempre juntos», seja qual for a situação. Deste modo nos
tornaríamos mais sensíveis e sábios perante os mais duros
acontecimentos, como a morte de filhos, guerras e demais tragédias.
No ambiente geral da sala, sente-se que a união
interiorizada, resistente aos conflitos, é a melhor ajuda na cena da
morte e em todos os momentos difíceis – para quem vai e para quem
fica. E que o carinho verdadeiro é o melhor remédio para quem sofre.
No cenário da hora final, preocupam-se por que eu
sinta a meu lado respeito e carinho e que (apesar de tudo!) me amam.
E assim, por muito isolado que seja o momento, posso ter a sensação
de um bebé que se embala.
Todos testemunham que eu, como crente, veria neste
“embalo” o carinho de Deus, pois sempre afirmei que, pela razão e
conhecimentos que me eram possíveis, não podia negar (nem
compreender plenamente…) a «presença divina» ao longo de toda a
história – bem na linha de Nicolau de Cusa: não vejo a Luz, só vejo
as coisas iluminadas.
Cai-se na conta de como ambientes frequentes de
coragem e alegria aumentam e fortalecem a coragem e alegria nas
horas mais difíceis. Toda a pessoa que morre tem um testemunho a dar
– cuja energia permanecerá para sempre. E até os erros e “maldades”
serão lições do que pode estar bem ou mal.
Provavelmente pela última vez, discutem a importância
de saber falar tranquilamente da morte, de como viver com ela e de
como desejamos ser tratados nessa hora que sela a vida de cada qual.
Sem eu notar, discutem se é natural e desejável que a
seu tempo apenas se preocupem com diminuir a dor e sofrimento
(físico e espiritual). De qualquer modo, recordam frases minhas: que
não desejo vegetar («cientificamente» inconsciente sem
probabilidades de recuperação), sendo já um corpo morto para a
sociedade; embora possa manter o natural desejo de o tempo parar e
continuar as horas boas neste mundo que conheço e onde, como se diz,
«cada qual se pode amanhar».Mas muita atenção: não me queiram
enganar nem me olhem como um coitadinho – mas sim como companheiros
na mesma aventura.
Manifesto ficou o meu mais firme desejo: ser útil
para sempre. Ao longo do teatro da vida, na cena final e depois de
sair do palco.
Lembram que entreguei o meu corpo à Faculdade de
Medicina da Universidade do Porto. E que, a meu ver, o corpo é uma
oferta à Humanidade quando, seja como for, o entregamos à Natureza:
pois simboliza a vida com que reforçámos ou pusemos à prova a
infinda corrente da Vida cujo mistério cativa todos os seres
humanos.
Para terminar, ressaltará esta ideia: na medida em
que a sociedade valorizar serenamente estes sentimentos, saberemos
«sair da cena» com a elegância e orgulho de bom actor. E o Grande
Teatro da Vida continuará cada vez mais aprimorado para um final
plenamente feliz.
Como na Páscoa, sempre renovada.
5 de Abril de 2022 |