Os
exemplos de tradução dos evangelhos, dados por Dimas Almeida, no 4º
texto do ensaio que publicou no 7MARGENS, foram objecto de discussão
num pequeno grupo de amigos. Para os meus 5 anos de grego já
patinado, o texto de Dimas é o que melhor representa o original.
Ficámos a pensar que os 2000 anos passados não nos fazem mais
inteligentes ou mais simples, mas sim continuadores das grandes
perguntas e dos grandes interesses, com as mesmas tendências
fundamentais positivas e negativas, embora sujeitos continuamente a
novos condicionalismos. Até gostamos de usar expressões praticamente
idênticas. O que é patente nas traduções propostas por Dimas:
parecem mais próprias do que se diria hoje em circunstâncias
paralelas.
Mas
faltava-me ver traduções de passagens «delicadas», como as que se
referem à última ceia e, sobretudo, aos vários títulos que os
evangelistas e escritores ou comentadores ao longo dos tempos foram
aplicando, com avanços e recuos, à pessoa e missão de Jesus. O texto
n.º 9 chamou-me a atenção, ao falar de Logos eterno, de filho de
Deus, unigénito, etc..
Como é
próprio de conceitos «ricos», o significado de monoghenês e
theós dificilmente poderá ser definido e facilmente servirá de
apoio a ideias preconcebidas. Mas parece-me demasiado obscura,
semântica e estilisticamente, a parte em negrito da frase: «Um
Unigénito, Deus, o que está no seio do Pai, é que foi seu
intérprete». Já o resto da tradução parece muito feliz e mais afim com
a noção de Espírito de Deus (que podemos sentir como experiência
relacional da íntima e eterna Palavra e Sabedoria). Aliás, a
experiência de Deus como «uno», na Bíblia hebraica e no Corão,
deveria ser tida em conta nas traduções, como notas ou até
enriquecendo as introduções.
Também
se deveria dar atenção explícita ao facto de, por detrás desta
preocupação pelo sentido original dos termos mais provocadores de
dissensões, se desenharem cada vez com mais força sentimentos quer
fundamentalistas quer depreciativos. Como acontece aos conceitos de
«Palavra de Deus», «Livro sagrado» e «Revelação».
Apresentarei algumas achegas (minhas e não só) sob a forma de
questões (à moda das Responsa a Pontificia Commissione De Re Biblica
edita, proclamadas sob o fortíssimo peso da autoridade absoluta
dessa Pontifícia Comissão – elaboradas desde 1905 até 1933).
QUESTÃO
1: «Palavra de Deus» não será uma expressão compreendida muitas
vezes de modo idolátrico e irracional? Como Palavra incarnada, não
será equivalente ao estatuto do Corão, à semelhança do que é Cristo
para os cristãos?
QUESTÃO
2: Não subsistirá ainda a subterrânea pretensão de descobrir uma
«fórmula de Deus» nos chamados livros sagrados? E que cada «fórmula»
se apregoa como a única genuína, seja em disputas inter-religiosas
seja dentro da mesma confissão de fé? Pior ainda, usando os livros
sagrados como se fossem livros de receitas (espirituais, políticas,
morais…)?
QUESTÃO
3: Lendo os comentários apensos a The Jewish Study Bible
(2. ed. Oxford Univ. Press, USA. 2014),The Jewish Annotated New
Testament (2.ª ed. ibidem (2017), The New Oxford Annotated
Bible With the Apochrypha. (NRSV. 4.ª ed. Ibidem. 2010), guardei a
impressão de que o Judaísmo, relativamente ao Cristianismo e Islão,
aceita melhor a elaboração (razoável) de sentidos diversos. Como que
são mais realistas, praticamente admitindo que a palavra original
já é uma espécie de tradução do sentimento e pensamento condicionada
pela cultura local, pelas virtualidades da linguagem utilizada e
pelas pressões de grupos de poder. Consequentemente, por que não
admitir que qualquer edição ou qualquer tradução exprime um
incremento da vida espiritual ao reagir perante os textos e
comentários ao longo do tempo, estimulando o desejo especificamente
humano – compreender-se a si e ao universo e a todas os fenómenos de
que vamos tendo consciência? Não teremos que ser mais humildes e
enriquecermo-nos com as contínuas interpretações pelos tempos fora?
QUESTÃO
4: As traduções inter-confessionais (não só cristãs) não deverão ser
preferidas ao trabalho de um só grande autor ou, o que não é melhor,
de uma equipa que não se arrisca a pensar fora do respectivo
catecismo?
QUESTÃO
5: Se nenhuma tradução é garantidamente livre de contradições,
incorrecções e passagens obscuras, em geral já existentes no
original, por que não partir do princípio de que TRADUÇÃO NÃO É
TRAIÇÃO: é expansão do dinamismo da obra original?
QUESTÃO
6: Por que não aceitar a justificação apresentada pelo próprio texto
corânico: as passagens questionáveis só põem à prova a fé ou boa
intenção do crente? Aliás, o próprio Maomé (como qualquer outro
autor) não evoluiria no pensamento e no agir?
QUESTÃO
7: Por outro lado, se consideramos a Bíblia Hebraica (e os seus
Apócrifos e Comentários) como reacção mais ou menos elaborada às
várias situações da vida de um povo em formação, não devemos
considerar «normais» a existência de passos obscuros e
contraditórios?
QUESTÃO
8: Sendo tão importante a exactidão linguística e a retenção dos
valores das línguas indo-europeias (particularmente dos ramos
germânico e itálico), por que é que se aceitou tão submissa e
acriticamente a proposta do chamado AO90? Valerá a pena fechar os
olhos às falhas graves quanto à fundamentação científica, legalidade
do processo e quais os objectivos que dissimulada mas realmente
interessava atingir? E quanto aos considerandos históricos e
geopolíticos? Não importa o embrulho instaurado, que torna mais
confusas as traduções (incluindo a mistura brasileiro-português) e
delapida a riqueza semântica das palavras (embora estas não sejam «a
Palavra»)?
O vírus
do facilitismo, interesseirismo disfarçado, mais a indiferença pela
cultura e beleza produzem maus originais, péssimas traduções e até
abrem portas a pandemias.
13-12-2020
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NB: O texto que segue apresenta ligeiras alterações, propostas pelo
7 MARGENS. |