Há cada vez mais teólogos de renome a lastimar um
domingo dedicado ao esforço da razão para «explicar» o mistério de
Deus… O «mistério de um só Deus» foi substituído por uma «trindade
de mistérios»: o de Deus criador, pai e mãe em plenitude; o de um
ser humano que se deixou penetrar por Deus sem entraves da sua
liberdade, conhecimento e vontade; o da actuação perene de Deus na
história humana. Se não se pode provar e afirmar que «Deus existe»
como é que podemos provar e afirmar que um determinado ser humano é
Deus? Se a sua existência levanta sérios problemas, quem tem a
arrogância de falar sobre «como» é Deus na sua intimidade? Se até
toda esta terminologia de modo nenhum se pode referir a Deus
adequadamente! Como diz serena e profundamente o cardeal Nicolau de
Cusa, já no séc. XV: «Deus está fora de qualquer conceito», «é
inefável»; só posso adorar como Deus aquilo que ultrapassa
totalmente tudo o que é cognoscível (in De Deo abscondito).
Só assim é que esta adoração também é amor em plenitude, amor sem
medo, pois não está sujeito aos limites do amor entre os seres
humanos, por mais nobre que se apresente. Mas por que é que dizemos
que o amor está acima de todas as coisas? Porque se pode mover para
o infinito, porque deseja a plenitude – porque o ser humano é
inquieto, perante a consciência de não compreender a origem dessa
inquietude, que é o mistério de Deus.
Este domingo também se podia chamar o «domingo do
silêncio»: porque o amor não cabe em palavras e deseja poder confiar
plenamente. As palavras até são enganosas ou pelo menos desajustadas
e até infelizes. Por muito inteligentes e intuitivos que possamos
ser, só ficamos a perder se nos prendemos a uma imagem de Deus «à
semelhança» do nosso esforço racional.
Miguel Torga, no «Sexto dia» de A Criação do Mundo, conta a
história de uma rapariga, fiel catequista, de comunhão diária, que
foi obrigada a consultá-lo por afirmar que estava «grávida de três
meses do Espírito Santo». Depois de a ter cuidadosamente examinado,
o Dr. Rocha verificou que ela «estava como nascera». Não a conseguiu
convencer como médico mas sim como poeta: advertiu-a que arriscava
ir para o inferno, pois o Espírito Santo não podia ter dois filhos –
ou deixava de haver trindade! E com que coragem se comparava a Nossa
Senhora? «E despediu-se curada e agradecida».
Aveiro, 12-05-2020 |