Assisti à cerimónia da consagração de Portugal,
Espanha e de outras conferências episcopais ao coração de Jesus e ao
coração de Maria. Um ponto de partida para reflectir sobre oração e
rito.
Não escrevi Coração (com maiúscula) para chamar a
atenção que é a Jesus e a sua Mãe que nos dirigimos. O coração é
tradicionalmente o centro simbólico de qualidades como bondade,
carinho e fortaleza. Simboliza a pessoa total – que tem bom ou mau
coração.
É natural esta imagem humana do Mistério de Deus.
Todas as religiões têm cenários semelhantes. Mas estes fenómenos são
pura fantasia se nos esquecermos de que são apenas símbolos do
indizível mistério do Deus. O Vaticano II abriu «oficialmente» a
porta ao reconhecimento de que ninguém se pode arrogar a possuir o
verdadeiro conceito de Deus. Tanto o chamado Antigo como o Novo
Testamento reconhecem que não é possível conhecer o mistério de
Deus. Lembro a propósito a frase evangélica atribuída a Jesus: «em
casa de meu Pai há muitas moradas»; assim como o grande banquete
para o qual toda a espécie de gente foi convidada – apenas um foi
posto na rua, por não se apresentar devidamente. Creio que o
critério de não-admissão ou de expulsão é a bem-aventurança dos
«puros de coração», no sentido de que se falou acima.
A maneira de rezar a Deus depende da noção e imagem
que temos de Deus. Por isso, os inovadores religiosos e mestres
espirituais introduzem modos peculiares de oração. Os próprios
discípulos de Jesus pedem-lhe que os ensine a orar «como João
ensinou aos dele» (Lc 11,1).
No Pai Nosso, supera-se o egoísmo humano ou a
tentativa de manipular Deus; e tomamos consciência da nossa
responsabilidade. Pomos em Deus a máscara (a mais valiosa que
podíamos dar) de Pessoa com quem nos relacionamos; e nós tiramos a
nossa máscara de uma total e intocável autonomia humana.
Compreendemos que o rosto de Deus se foi configurando ao longo da
história humana, adquirindo as mais diversas formas em cada
religião, umas ingénuas, estranhas, assustadoras ou mesmo terríveis,
e outras mais elaboradas. Todas resumem a universal experiência de
Deus. No caso do cristianismo, convém meditar na experiência bíblica
até culminar no Deus de Jesus de Nazaré.
Mudar a «petição» para «desejo» é boa estratégia para
subir o nível da oração. Basicamente é o desejo da plenitude. Assim,
não «desejamos pedindo» mas «desejamos desejando». Deus é alguém
para quem é bom olhar e com ele entramos num compromisso libertador.
Sentimos que é Deus que nos pede para não sermos
contrários ao seu amor. E que precisamos de descobrir as brechas do
mal e formar uma comunidade determinada a fazer prevalecer o que é
bom.
Os nossos conceitos e hábitos de orar levantam muitos
problemas e bloqueamentos. Mas também muita gente realizou com êxito
a aquisição de modos mais ricos de orar e ganhou uma profunda
experiência da originalidade e do amor de Deus.
Aprofundamos a consciência da transcendência de Deus
e da sua presença mesmo quando parece ausente.
O que é evidente em Jesus: ao orar «toda a noite», é
um contemplativo da riqueza e força de Deus. Descobre que ele é
«Abba», fonte de alegria e confiança. Assim nos ensinou no
Pai-Nosso: começa pelo desejo ardente e abertura à iniciativa
divina, confiando em que vale a pena viver (com alguma coisa para
comer…) e que «homens e deuses» têm o rasgo específico de perdoar.
Perdoar custa e é muitas vezes mal interpretado. E não é preciso
falar muito (Mt.6,7). Precisamos de falar com Deus com a confiança
de um filho.
A adultez, por si, é entendida como não ter que viver
às custas dos pais: sabendo que estes só desejam sucesso para o
trabalho dos filhos. Uns e outros festejam a Páscoa como libertação
– para uma vida melhor, um mundo melhor. O Pai Nosso educa-nos sobre
a verdade de Deus: não é um pronto-socorro – mas desafia-nos a crer
no seu amor «inacreditável».
Aveiro,
03-04-2020 |