Como devia ser em todos os 40 dias antes da Páscoa.
Somos nós que precisamos de pôr Deus em isolamento: das ideias
trapalhonas, relações humanas trapalhonas quando não trapaceiras, e
de uma data de coisas que mais atrapalham do que ajudam a viver bem.
Uma verdadeira e cuidadosa revisão do modo de viver.
Deus em isolamento permite o encontro com Deus «sem
máscara». Em todos os povos do Mundo, desde os tempos mais antigos,
a ciência tem encontrado provas que sugerem a crença numa «energia»
transcendente ao ser humano: mas para cada um dos povos e em cada
época, esse ser, energia ou poder transcendente usa várias máscaras,
cujos sentidos se combinam, misturando sentimentos e raciocínios,
que facilmente se transformam em mera especulação. O perigo
continuamente à espreita é a dogmatização, doutrinamento e imposição
dessas máscaras.
O grande estudioso do fenómeno religioso, Mircea
Eliade, em vez de «História das religiões» preferiu o título
«História das crenças e ideias religiosas» para a sua derradeira
grande obra, cuja última parte foi confiada aos mais chegados
colaboradores, perante a morte iminente (22 de Abril de 1986).
Deus é indefinível, filosófica e teologicamente. Os
próprios Livros Sagrados (Bíblia, Corão, Upanishads…) apenas referem
os vários tipos de máscaras que atribuem ou até «vêem» em Deus.
Que máscaras de Deus lhe são atribuídas neste tempo
de pandemia? Tentarei reflectir sobre algumas, em próximo artigo.
Deus é indefinível, mas não se pode negar que a
história da Humanidade revela em todas as civilizações uma «noção»
de Deus.
Aprofundando a etimologia de «noção», na linha de
autêntica arqueologia do pensamento, próxima da evolução semântica,
podemos encontrar o latim nosco e o grego gnôsis
(vulgarmente conhecimento).Derivam do radical indo-europeu gno,
que também inclui a ideia de nascer, gerar, poder. Estes sentidos
(não totalmente aceites por alguns especialistas) referem o acto
genuinamente humano de reflectir sobre o que conhece da realidade,
explorá-la e de como aumentar o seu poder – sobre coisas e pessoas.
O âmbito semântico de nosco implica uma acção começada e não
acabada: começar ou aprender a conhecer, tomar conhecimento… Outras
línguas latinas incluem claramente o sentido de atrever-se perante o
desconhecido. Em inglês, pode-se traduzir por view: acto de
examinar, percepção, pensamento, intenção, expectativa…; e por
acquaintance: conhecer familiarmente (portanto, bastante bem –
devido a prefixos intensivos do grego gnosco). Tenhamos
presente o conhecer bíblico (intimidade da relação sexual). O
dicionário Houaiss diz sobre noção: conhecimento imediato,
intuitivo, elementar, superficial. Várias línguas referem esta
ausência de complexidade, como se se tratasse de aparência, do que
nos parece…
Noção de Deus seria o resultado de se dar conta de
algo que não se vê bem, mas que parece estar presente em tudo e que
portanto nos põe à procura do que é que se passa. Hoje, podemos
dizer que é uma aventura sem fim – e a meu ver é a melhor definição
de eternidade feliz, pois andaremos sempre por caminhos novos…
A que Deus nos dirigimos? Tiremos a máscara de Deus e
fiquemos atentos àquela sensação de que encontrámos o que queríamos
– mas que nos foge mal a gente a quer agarrar ou ver melhor. É cair
na conta de que há um Eu que é mais do que eu («mais íntimo do que a
minha intimidade», disse S. Agostinho).
Não consegui estudar como queria o misticismo,
sobretudo no Judaísmo, Cristianismo e Islão. Mas guardei a impressão
de que todos eles se assemelham profundamente – porque aprofundam
Deus sem máscaras. Depois, claro está, «chamam-lhe nomes», porque só
conseguimos falar do que é definível. Daí que os termos metafísicos
sejam diferentemente interpretados; e que a teologia mais profunda
se chame negativa.
Devo ao Padre jesuíta Júlio Fragata, meu professor e
orientador, e que faria 100 anos no próximo dia 27 de Abril, um
estudo profundo do cardeal Nicolau de Cusa (1401-1464), baseado na
célebre obra De Deo Abscondito (O Deus escondido).
«Adoro Deus porque não o posso definir». «É louco
quem julga saber aquilo que não se pode saber». Este cardeal não
podia ser canonizado, provavelmente nem hoje, embora se dê cada vez
mais razão à teologia negativa: nenhum dos nossos conceitos se pode
aplicar a Deus, porque ele é, para nós, o que está para além dos
nossos sentimentos, desejos e razões. Se dizemos que é Luz, Verdade,
Amor, Beleza… apenas lhe queremos atribuir o que tem mais valor
consensual para o ser humano. Há quem se sinta frustrado por não
conseguir o conhecimento de Deus. Mas se o pudesse conseguir… teria
a mais destruidora frustração de ver que só tinha encontrado uma
bela torre – mas inacabada.
Espero conseguir escrever alguma coisa de jeito sobre
as máscaras de Deus. Tem sido a minha aventurosa quarentena – mas
que, para já, não desejo que se torne eterna…
Termino com algumas ideias centrais (sem pôr aspas e
mantendo o discurso em 1ª pessoa) de uma magnífica conferência do
rabino Dow Marmur, em 1982 (Londres):
Sinto-me realizado, devido à sabedoria que posso
descobrir na tradição e escrituras do Judaísmo. Estudar estas fontes
de sabedoria abre-nos a inteligência e o espanto, que darão origem à
fé. Uma pessoa ignorante não pode ser verdadeiramente religiosa.
Toda a vida é um chamamento para meditar e praticar a fé. É isso o
espírito do Sábado.
Um verdadeiro judeu tem que se reconhecer como um elo
na longa corrente da Humanidade. Esforça-se por compreender o
presente e as razões do passado para melhor responder aos desafios
do presente e futuro. Israel é historicamente o resultado da luta do
espírito do Hebraísmo com as civilizações que foi e vai encontrando:
são encontros essenciais para enriquecer os valores fulcrais de
Israel («forte contra seres divinos e humanos», nome que o Anjo de
Deus pôs a Jacob, depois de uma luta entre os dois e em que Jacob
venceu, apesar de ficar muito ferido. Gen.32,29). Pois todos os
acontecimentos são perigo e oportunidade: aniquilamento ou nova
vida. Assim nos aconteceu com o Holocausto. E lutamos para que nada
do género possa acontecer novamente.
A experiência do sofrimento habilitou-nos para
compreender e minorar o sofrimento alheio. O sofrimento é ocasião
para afirmar a vida. E a alegria de sobreviver deve ser partilhada e
celebrada com todos. Para isso são importantes os encontros de
família e da comunidade religiosa. Nestes, o rabi não é um vulgar
professor mas sim o catalisador. Deus só pode ser encontrado na
partilha desta sabedoria, nesta fé comunitária de vencer.
Podemos falar a Deus mas não sobre Deus. Recomendo a
obra de Martin Buber and Thou. Se objectivarmos Deus, não nos
poderemos relacionar verdadeiramente com ele.
No meio de tudo o que possa acontecer, a esperança é
pois a função especial da minha vida religiosa. Não se trata de
esperar pela vinda do Messias mas de caminhar cada dia ao seu
encontro.
Na base deste testemunho, e bem a propósito, avanço
esta conclusão:
Olhando para a nossa história e projectos do futuro,
pessoais ou comunitários, direi que orar é intuir Deus nas nossas
frustrações e tragédias, bem como nos nossos sucessos: procurando
descobrir o sentido positivo do esforço de cada ser humano para
realizar a felicidade – a felicidade comum, sem máscaras.
21 Março 2020
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Aveiro,
21-03-2021 |