Perante
a calamidade de seca, foi proposta
uma
oração comunitária pela chuva, composta pelo papa Paulo VI. Rezam
assim os dois primeiros parágrafos:
«Deus, nosso Pai, Senhor do Céu e da terra, Tu és para nós
existência, energia e vida.
Criaste o homem à Tua imagem a fim de que com o seu trabalho ele
faça frutificar as riquezas da terra, colaborando assim na Tua
criação.»
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Sequência total da oração
Temos
consciência da nossa miséria e fraqueza: nada podemos fazer sem Ti.
Tu, Pai bondoso, que sobre todos fazes brilhar o sol e fazes cair a
chuva, tem compaixão de todos os que sofrem duramente pela seca que
nos ameaça nestes dias.
Escuta com bondade as orações que Te são dirigidas com confiança
pela Tua Igreja, como satisfizeste as súplicas do profeta Elias que
intercedia em favor do Teu povo.
Faz
cair do céu sobre a terra árida a chuva desejada a fim de que
renasçam os frutos e sejam salvos homens e animais. Que a chuva seja
para nós o sinal da Tua graça e da Tua bênção. Assim, reconfortados
pela Tua misericórdia, dar-Te-emos graças por todos os dons da terra
e do céu, com os quais o Teu Espírito satisfaz a nossa sede.
Por
Jesus Cristo, Teu Filho, que nos revelou o Teu amor, fonte de água
viva, que brota para a vida eterna. Ámen.
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Na
linha de vários salmos, esta oração é exemplo de relação íntima com
Deus e também aplica uma forma feliz de “iniciar a conversa”: depois
do louvor a Deus, põe logo em destaque a boa vontade e promessa de
trabalhar a sério no projecto da Criação.
Porém, o
resto desse encontro com Deus é sobretudo piedosa confissão das
nossas pobrezas e fraquezas. Faz lembrar a exposição de
chagas e de toda a espécie de misérias, corporais e espirituais, que
impressionam as multidões nas festas tradicionais ou religiosas. Um
cenário de gente como que abandonada pelos seus semelhantes e pelo
próprio Deus; e como um acto de Fé sem Esperança: Tu é que criaste
este mundo, só tu tens poder para nos curar, encher os nossos rios e
multiplicar os bons frutos da natureza!
A oração
não parece dar a devida importância ao reconhecimento da culpa que
nos cabe – por actos, pensamentos e omissões. Faltam palavras
sinceras e reflectidas sobre o que nos compete fazer e de como, em
vez de encobrir os erros e comportamentos irresponsáveis do passado,
deles havemos de tirar a devida lição. Ou será que não achamos valer
a pena arranjar coragem para enfrentar a verdade e agir
coerentemente? Ou que nos paralisa o medo de desagradar aos
fanáticos e poderosos adoradores do Dinheiro – esses que são o mais
terrível flagelo da Humanidade?
À
pandemia seguiu-se a seca e rebentou Putin. O mais grave, porém, é
que todos nos comportámos como sentinelas ensonadas – até por
conveniência pessoal.
Contudo,
sabemos que cada qual recebe de Deus um ou mais «talentos», que hoje
significam capacidades de trabalho produtivo. Esta imagem traduz o
sentimento, com mais ou menos profundidade religiosa, de que viemos
a este mundo e dele saímos sem sermos previamente consultados – mas
com a missão de pôr a render a «energia vital» que transparece em
cada ser humano (como diz a oração de Paulo VI).
Ao longo
da História, só muito lentamente nos fomos dando conta de que todos
os seres humanos, por mais insignificantes ou inúteis que pareçamos,
somos imprescindíveis para a evolução da Humanidade. Todos somos
transmissores dessa energia vital. E todos concorremos para
mutuamente estimular a capacidade intelectual, criativa e afectiva,
que permita analisar e intervir nos graves problemas que nos
afectam.
Toda a
Humanidade deve desejar que nenhuma vida humana seja abafada e que
proteger cada ser humano é promover o bem comum.
«Rezar»
só para pedir que tudo corra a nosso gosto faz lembrar a crítica de
Jesus, na linha de tantos salmos e avisos de profetas: «Este povo
louva-me com os lábios mas o seu coração está longe de mim».
A oração
contra a seca recordou-me a entrevista a um pescador da ria de Faro,
que se queixava da poluição: mas apenas chorava o seu cantinho.
Nunca referiu o problema central da enorme área poluída nem a
responsabilidade de todos e de cada um.
Facilmente esquecemos o verdadeiro e sólido enriquecimento que nasce
do pensamento, da técnica e da organização social – instituições
sociais e nomeadamente as de função educativa. Enterramos os
talentos com que podíamos evitar tragédias climáticas e as guerras
que nascem da ignorância e do irracional poder destruidor.
Por
comodismo ficamos pelas vistas curtas. Mas o convívio com Deus é
fonte de prazer, de comunicação sincera, de investigação e
criatividade. Atentos à Força do seu Espírito, ganhamos o
discernimento da melhor coordenação para o Bem Comum, que nos leva a
descobrir as bases sólidas de uma Casa onde ninguém fica abandonado.
E em
concordância com as nossas «fraquezas», terminaria «metendo uma
cunha» ao Senhor Jesus (que nos evangelhos até parece gostar) – e
que nos incitou a construir sobre alicerces que nenhuma calamidade
possa destruir.
Aveiro, 03-03-2022 |