É isso mesmo: dar cabo do vírus que destrói o
interior do bom senso, da clareza, da
razão-ordem-originalidade-arte-harmonia (da mesma raiz indo-europeia
AR, alternando com RA e OR, que tem o sentido básico de adaptação) –
e de tal modo que apenas deixa à vista aquela máscara que esconde o
que se é por dentro.
Ao tropeçar nas partilhas do grupo «As nossas vidas
depois do Covid», dei com o título «Clareza e bom senso», um olhar
bem fundamentado sobre as boas atitudes a tomar, sem obsessões
impulsivas.
Uma carta de «gente bem educada» para «gente bem
educada» (=sempre disposta a pensar e escolher o que vale mais a
pena). Mas sem eficácia para gente só «virtualmente» educada.
Neste carnaval pandémico, «a gente normal», no
sentido estatístico, precisa de imposições claras e de fiscalização
com poder punitivo. Mas como indicar com clareza, e impor, qual o
número e frequência das pessoas a nosso lado, além da avaliação
das condições ambientais, para bem decidir se deve ou não pôr-se a
máscara, que tipo de máscara e que distância física a respeitar?
Infelizmente a gente «normal» não está para pensar e
faz as escolhas sem visão ampla e clara: segue o que é mais fácil,
agradável, mais rápido. E se lhe dá para fugir, arrisca-se a agir
como uma «manada» de gente, inconsciente de que vai empurrando os da
frente para o mesmo precipício fatal.
Por sua vez, uma «sociedade normal», já no sentido
moral ou filosófico do termo, conhece as implicações de um regime
democrático escolhido pensadamente. Para tanto, vale bem a pena
exercitar o «grupo perfeito» do filósofo J. Dewey (+1952), muito
influente na política e na educação.
Para ele, a democracia é mais do que um sistema
político: é saber «ouvir e perguntar», dando atenção para que todos
dêem atenção; enriquecendo as ideias próprias com as ideias dos
outros, com o brio de ser capaz de admitir, contra si próprio, «o
que vale mais a pena»;e praticando a concisão e o respeito mútuo,
conformes a uma discussão entre seres verdadeiramente humanos.
Nesse grupo perfeito, ninguém terá medo ou
preconceitos de levantar questões mais ou menos delicadas – e muitas
vezes tidas por «delicadas» devido precisamente aos preconceitos que
não temos coragem de manifestar nem, muito menos, de pôr em questão.
É um grupo competente para conjugar Democracia e
Forças de Segurança. Não podem ser estas um «bem educado» e
eficiente «corpo de fiscalização» com poderes educadamente
punitivos? Não é verdade que devem ser pessoas aptas a proteger e
salvar o trabalho de quem vive e luta para o que vale mais a pena?
Isto é, a democracia não pode brincar com a justiça.
Mas para trabalhar na formulação de um novo conceito
de segurança e de «forças da ordem»,precisamos de assimilar o valor
do altruísmo e do lugar do respeito nas relações humanas.
Respeito concretizado na responsabilidade do trabalho
pelo bem comum, sem fechar os olhos à corrupção ideológica e
perigosamente manipulada de conceitos como o de greve; ou estudando
a justiça realista quanto à grelha de vencimentos; e de como
garantir uma aplicação da «super-riqueza» ao desenvolvimento do bem
comum, conjugada com o direito de posse.
E não fomos alertados para discutir um novo sistema
educativo? Mais próximo das famílias, dos mestres, dos problemas
sociais e dos valores culturais, e assim menos massificado, menos
exposto a maus contágios. Utilizando os grandes espaços, cobertos ou
abertos, com uma gestão suficientemente autónoma para ser
responsável. Seria até um grande bónus para as aulas de moral e
religião (para não falar do descalabro da educação cívica).
A Covid pôs a nu o retrocesso da sociedade actual a
um estádio infantil: ninguém é responsável, cada qual só pensa em se
proteger, sem respeito por qualquer outro nem sombra de altruísmo.
Como animais selvagens a lutar pela sobrevivência. E deu-nos uma
bofetada, suficiente para nos acordar da submissão irracional às
interesseiras jogadas de alguns grupos de poder. É o tempo de
reflectir sobre o rumo a tomar e inventar novos estilos de vida,
onde a criatividade, competência e os (bons) sonhos de cada pessoa
se possam realizar na melhor harmonia.
Por tudo isto, a originalidade é cada vez mais
necessária – com a sabedoria e ciência imprescindíveis para
distinguir entre venenos e a trabalhosa «poção mágica».
O grupo é «perfeito» quando a diversidade dos seus
elementos leva a que todos se ajudem, todos se libertem e todos se
completem. Mais exactamente: muitos grupos trabalhando com a
potencialidade que lhes é própria, descobrindo assim novos caminhos
e soluções para viver cada vez melhor e mais humanamente. Sem
esquecer a fórmula que repetia aos meus alunos de Filosofia da
Educação:
HERANÇA + CRIATIVIDADE = PROGRESSO.
PS: Pro-gresso = passo em frente (descontando os
feitos para trás…).
Aveiro, 31-08-2020 |