Liturgia Pagã

 

«Amor em tempo de guerra»

4º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Jeremias, 1, 4-5, 17-19

2ª leitura: 1ª Carta aos Coríntios, 12, 31 – 13,13

Evangelho: S. Lucas, 4, 21-30

 

O texto de S. Paulo ficou célebre na história como «hino à caridade» ou «hino ao amor». Tanto pela riqueza do conteúdo como pela beleza literária. Mas só o poderia ter escrito porque, ao contrário dos judeus do evangelho, não rejeitou o projecto daquele Jesus que ao princípio lhe parecia insuportável e até condenável. S. Paulo era um fariseu educado e coerente – mas como era educado a sério foi capaz de aceitar o valor superior de novas ideias e novos métodos de acção.

S. Paulo escolheu o cume mais apropriado para a visão panorâmica do ser humano. Um cume de escarpas íngremes e escorregadias, que exigem esforço e atenção: o centro da benignidade, da paciência, da justiça, da verdade, enlaçadas pela prudência e «bom senso». Só o amor sabe dar remédios amargos, com o objectivo honesto de um bem superior e quanto possível ao serviço de todos. Só o amor inteligente, culto e educado é que é eficiente.

No evangelho de hoje, os ouvintes de Jesus ficaram «chocados» ao verem um simples filho de carpinteiro arrogar-se tanta liberdade e sabedoria – e quiseram-no impedir de «seguir o seu caminho». Mas Jesus era perfeito exemplo de amor equilibrado –  e calmamente «continuou».

Se olharmos para Jeremias, vemos como ele receava enfrentar o povo; mas Deus avisou-o de que, se não se preparasse para defender a verdade, seria a primeira vítima da mentira. E também Jeremias se lançou à aventura.

Jeremias e Jesus foram chamados a defender corajosamente uma vida cada vez mais humana, onde ninguém é um projecto inútil.

Quantas vezes deixamos morrer ou até matamos os projectos dos outros, por comodismo ou por inveja? Cada um de nós é de facto insubstituível. Precisamos de uma humanidade colorida e saudável. As nossas políticas e atitudes estarão de acordo com a noção adulta de amor?

* * *

«Amor» ou «caridade»?

Na presente passagem da 1ª carta aos Coríntios, S. Paulo utiliza o célebre vocábulo grego – «agápe». Na forma verbal, significa acolher com afecto (particularmente a uma criança ou a um hóspede), gostar ou desejar qualquer coisa; na forma substantiva, significa o amor entre pessoas, o carinho (também traduz o «meu querido»). O Cristianismo deu-lhe o sentido de «caridade» e de «refeição em comum» (dos cristãos), simbolizando o mais alto nível de afecto entre os seres humanos e entre estes e o próprio Deus.

«Caridade» provém do radical indo-europeu «ka», que significa gostar, desejar e amar. Daí também deriva o nosso «caro», com suas várias significações: alto preço, valioso, digno de afecto e ternura (com forte componente sexual, patente em «carícia»).

Por sua vez, «amor» provém de uma raiz onomatopaica do indo-europeu: «ma» – lembra o grito da criança que «mama», donde a palavra «mãe». O sentido geral do radical latino é o de cuidar de crianças de peito.

Ao longo dos séculos, a começar pelos «grandes padres do cristianismo» (primeiros 6 séculos), o «amor» foi perversamente ligado ao «diabólico prazer carnal», e pintou-se a «caridade» de cores só «angélicas». A teologia moderna, porém, vai conquistando «a visão panorâmica do amor», reconhecendo que a ligação do ser humano com Deus só se realiza plenamente se integramos a polimorfa riqueza do amor na nossa forma «adulta» (2ª leitura).

Este equilíbrio é que nos torna capazes de combater pela verdade (1ª leitura) e de não rejeitar à partida um projecto de vida, por estranho ou inquietante que pareça, mas talvez mais valioso (evangelho).

A vida de Jesus Cristo evidencia como é fácil mandar alguém, qual projecto a rejeitar, para a linha de morte da guerra da vida. Mas também evidencia a vitória do «amor em tempo de guerra».

31-01-2016


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