Liturgia Pagã

 

Com os pés bem assentes

3º Domingo do tempo comum (ano C)

1ª leitura: Neemias, 8, 2-10

2ª leitura: 1ª Carta aos Coríntios, 12, 12-30

Evangelho: S. Lucas, 1, 1-4; 4, 14-21

 

Fechou o Livro e, fixando os ouvintes, disse em voz clara e calma: «cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir». Todos fixavam os olhos nele – mas o resto da história só será contado no domingo seguinte.

Atrás deste leitor, estendia-se longa tradição: Esdras e Neemias (meados do s. VI a.C.) também eram homens que sabiam ler as escrituras (competia aos levitas o estudo da Palavra da Deus). Os «retornados» do grande exílio choravam ao escutar a leitura clara e bem explicada (1ª leitura). Choravam como sinal de arrependimento e também de saudade. Foi então que Esdras, o leitor da Escritura, lembrou bem alto que não era um dia de tristeza – mas da alegria que é a força de Deus.

No evangelho de hoje, o leitor era Jesus. E encontrou a passagem de Isaías própria da entronização de um profeta: é o Espírito do Senhor que o leva a anunciar a Boa Nova aos pobres, a libertar os oprimidos e a proclamar um ano de jubileu. (S. Lucas é muito livre na organização do seu material: a citação de Isaías é uma combinação de temas dos capítulos 58 e 61).

Na linha dos antigos profetas, Lucas é muito terra-a-terra ao referir a organização injusta da sociedade: há gente sem meios de subsistência, há vítimas de extorsões abusivas e da má-fé de jogadas tanto políticas como económicas. Todos nós nos devemos preocupar pela justiça, criando, quanto possível, uma nova ordem. Daí a importância do Jubileu – ano propício para o perdão de dívidas e a libertação de escravos. Esta medida revestia-se de grande importância religiosa e política: reactivava o desígnio de Deus, restaurando as potencialidades de toda a criação e criando melhores condições sociais para que todos pudessem mostrar quanto valem.

Não será o que se pretende com o Jubileu lançado pelo Papa Francisco? Um ano propício a restaurar a ideia profundamente humana de misericórdia e a descobrir e promover novos comportamentos de justiça que recriem a beleza e agrado da criação. 

Neste projecto, temos que superar ressentimentos e fundamentalismos. Como lembra a 2ª leitura, toda a gente, mas mesmo toda, é chamada a formar parte do verdadeiro povo de Deus, cada qual exercendo os dons próprios – imprescindíveis para que o bem de todos se desenvolva continuamente pelos tempos fora.

É pena que dentro da própria Igreja católica se encontrem empecilhos a que cada qual possa exercer a sua função de modo livre e responsável. Parece haver medo de discutir honestamente e com clareza os vários problemas que se colocam no mundo que vivemos. Nem devemos ficar presos a tradicionais «princípios» morais ou teológicos: estes só valem se os sabemos discutir, compreender e adaptar. São fruto da meditação dos nossos antepassados – devemos dar o nosso contributo, ao longo de todas as gerações vindouras.

«Misericórdia» deriva do latim miser+cor: um «coração» que acompanha quem está em «aflição» («miséria»), ganhando o sentido de auxiliar activamente. Na tradição hebraica significa o apego instintivo e protector entre dois seres, particularmente da mãe para com o filho, desenvolvendo-se para uma relação de fidelidade a um pacto de bem-querer. Se agirmos assim, imitamos a misericórdia de Deus, tornamos o mundo menos agreste e o Bem mais visível e atraente.

Dizemos que Deus supera a lógica humana. «Superar» não é ir contra: através do exercício cuidado da razão, é que experimentamos como Deus é insondável e por isso mesmo atrai como um mundo sem fim em que dá gosto a gente perder-se.

Na discussão de ideias e projectos, já se deve reflectir a «justeza» dos pensamentos e a «delicadeza» para com os outros. Aliás, nunca será demais a cultura geral, a urbanidade e competência em relações humanas. Sem estas qualidades, nem o «espírito de Deus» se pode revelar.

Para construir algo de bom e ajudar alguém, temos que conhecer muito bem o terreno onde pomos os pés – e ter os pés bem assentes. Há muitas ajudas insensatas porque não se procura uma base sólida. Ao fim do dia, sobretudo durante este Jubileu, bem que podíamos perguntar: «Hoje, dei a mão a alguém?» Mas sem esquecer: «Tenho-me preparado para saber dar a mão?»

24-01-2016


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