Baptismo do Senhor (ano C)
1ª
leitura: Livro de Isaías, 42, 1-7
2ª
leitura: Actos dos Apóstolos, 10, 34-38
Evangelho: S. Lucas,3,15-16.21-22
«O vento agitava a superfície das águas». Assim se lê logo ao
princípio do primeiro livro da Bíblia. É o «vento de Deus» que torna
as águas cheias de vida. As águas que tudo podem destruir mas que
alimentam a vida de todos os seres e tornam saudável e agradável a
aparência dos humanos. Deus começa por eliminar a desordem da massa
informe das águas, e toda a criação vai ganhando novas formas e
sentido (nas mitologias antigas, a luta contra a desordem era o
grande trabalho dos deuses).
Se também o vento tudo pode destruir, já o vento suave enfuna as
velas, traz vida e favorece os empreendimentos humanos. No A. T. a
violência do vento simbolizava a «ira de Deus». Mas os antigos
profetas tiveram a experiência de que a «Força de Deus» se
manifestava mais adequadamente na «brisa suave». Seria contradição
do conceito de Deus vê-lo como destruidor. Só os deuses tradicionais
podem estar ligados à força destruidora (Baal significa «senhor da
tempestade»). Quando Elias fugia dos seus perseguidores (1
Reis,19,1-14), Deus marcou-lhe encontro no cimo da montanha sagrada
Horeb: aí se levantou um vento forte e destruidor, seguido de tremor
de terra e grande fogo. Mas Deus não aparecia. Até que por fim veio
uma brisa suave – a presença do Senhor.
Em hebraico, vento e espírito são designados pelo mesmo vocábulo. O
vento é a manifestação sensível da presença de Deus – imprevisível,
sem fronteiras, invisível e irresistível. O espírito que anima os
seres vivos é um dom de Deus, assim como o «espírito» doado a reis e
profetas, para que defendam a vida e promovam a justiça.
O texto grego de S. Lucas diz que João baptizava «pela» água
(instrumento do ritual); Jesus, porém, baptizará «no» Espírito –
iniciando a aventura com o «vento de Deus» que percorre o universo e
o vivifica.
Acrescenta o mesmo evangelista que Jesus também baptizará pelo fogo,
símbolo universal da força divina que ilumina e transforma tudo à
sua volta. Todos nós podemos receber um ou mais «baptismos de fogo»,
com as contrariedades da vida, que nos dão a têmpera e aptidão para
levar em frente os projectos que nos realizam e contribuem para a
realização de todos à nossa volta.
Para João, a «conversão» tinha por finalidade o perdão dos pecados;
para Jesus, a conversão é voltar-se para a «boa notícia» do Reino de
Deus, que dá sentido à luta para eliminar todas as causas de
sofrimento e angústia. A felicidade passa a ser um projecto a
realizar, com a «técnica» da comunhão com Deus e com os Homens. Uma
vida humanizada é reforçada pela relação com Deus a que se chama
oração. É um momento de espera pelo «bom vento» (como no caso de
Elias), que nos leva aos «frutos do espírito»: «amor, alegria, paz,
fidelidade, auto-domínio…» (Gálatas,5,22). Sem mudança (metanoia)
para uma vida cheia de interesse e razão de ser, que vale o mero
ritual do baptismo ou de outro sacramento? Os sacramentos não são um
acto de magia.
Para confirmar essa necessidade de mudança é que o rito completo do
baptismo inclui a unção com óleo, fortificante natural simbolizando
a preparação dos reis para defender a justiça, atender especialmente
à situação dos mais desfavorecidos e travar a mão dos exploradores
(salmo 72,1-4.12-14). Como o «servo de Javé» (1ª leitura), que
presta auxílio a quem precisa e pratica a justiça, como Jesus «que
passou fazendo o bem» (2ª leitura), «sem desfalecer nem
desistir».
Nos tradicionais baptismos de crianças, o compromisso pela justiça é
afirmado publicamente pelos pais, padrinhos e toda a comunidade
envolvente. É nesta comunidade, particularmente nos momentos
difíceis e de grande sofrimento, que deveríamos encontrar a força de
caminhar juntos no misterioso projecto da vida, sem desfalecer no
caminho da justiça e procurando as estratégias mais engenhosas para
a implementar. Deixamos assim às novas gerações o testemunho do
profundo conceito de «misericórdia» – o «bom vento» de Deus. |