Liturgia Pagã

 

Quem tem filhos tem cadilhos

Festa da Sagrada Família (ano C)

1ª leitura: Livro de Ben-Sirá, 3, 1-14

2ª leitura: Carta aos Colossenses, 3, 12-21

Evangelho: S. Lucas, 2, 41-52

 

Festejar um nascimento não é uma festa de boas vindas? Como quem diz: «Estás a ver? Toda a gente quer ser tua amiga! Sê nosso amigo também e que sejas muito feliz entre nós!» É a festa da esperança, feita de perguntas lançadas à vida.

O chamado «evangelho da infância» é obra dos evangelistas Mateus e Lucas. Misturam as cores do divino e do humano, criando assim quadros bem vivos sobre o papel tão excepcional de Jesus. Como narrativa histórica, tem muito pouco valor. Mas era costume, entre os historiadores do tempo, marcar o início e o fim da vida de um grande homem juntando acontecimentos fora do comum. Os discípulos guardaram uma experiência tão rica de Jesus que «naturalmente» pintaram em tons «fora do normal» o seu nascimento e juventude (e até mesmo, ao contarem a «vida pública» de Jesus, algumas histórias traduzem sobretudo a admiração que tinham pelo Mestre).

Também a tradição achou por bem dar um colorido muito próprio à família de Jesus – a «sagrada família». Como acontece a muitos termos ligados ao foro religioso, o adjectivo «sagrado» cheira «a não arejado», fora da maneira natural de viver (e de facto, o sentido etimológico é o de qualquer cosa que não pode ou não deve ser tocada, justamente por sair da esfera do «normal», particularmente por se aproximar da esfera do divino).

Felizmente, a família nuclear de Jesus lembra uma família agradavelmente comum. Onde pai e mãe nem sempre se entendem, onde há segredos, onde o filho discute com a mãe e até se permite «uma escapadela» – e os pais bem que sofreram (evangelho).

Mais tarde, já no início da «vida pública», os familiares acharam-no um tanto «anormal» e inconveniente, vendo-o a falar do que deveria estar fora das suas competências. E os conterrâneos também não aprovaram que o filho do carpinteiro local se arrogasse tão grande dom de profecia.

Mesmo a dois dias do Natal, porém, apetece ver sobretudo um pai e mãe babados com o seu menino, esquecendo as agruras da circunstância.

A família, mesmo que não seja exemplar, é símbolo de um mundo perfeito, do melhor ambiente possível. Favorece a estabilidade desejável: devia poder ser chamada o nosso «segundo útero», em que os choques da vida fortificam sem destruir. É o lugar natural dos primeiros confrontos relacionais. Onde todos aprendem a não rejeitar a diversidade de ideias, mesmo quando parecem «chocantes». É assim que ficamos alerta para novos caminhos de pensamento e de acção, juntando sabedoria e originalidade. Aprendemos a despertar a disposição amigável perante o mundo desconhecido que é cada qual, perante o outro sexo e o próprio sexo; e a não ter medo de partilhar afectos e ideais nem de se aventurar na vida (ou na morte)… Porque a solidez do amor permite a discussão fecunda e a diversidade de projectos de vida.

Por isso se chama a primeira escola da vida. Mas os «mestres» dessa «escola» e a sociedade em que vivem os «mestres» estarão deveras interessados na qualidade dessa «escola»?

A família de Jesus chama-se «sagrada» devido ao respeito que nos infunde a aproximação com o divino. Mas este respeito também se confunde com uma espécie de medo, favorecendo o afastamento do Deus insondável. Porém, a característica da família natural de Jesus e da «família» como ele chamou a todos os seus seguidores é justamente a manifestação de um ambiente em que tudo o que é humano pode ser bom, onde o divino e o humano se misturam naturalmente, sem nos sentirmos divididos entre dois mundos ou com duas formas de andar neste mundo. Esta unidade é que nos dá razão para amar a nossa família como sagrada, como um «posto avançado» donde partir para a aventura.

            Os projectos dos adolescentes e de todos os adultos saudavelmente adolescentes dificilmente são bem compreendidos: nem pelos outros nem sequer pelo próprio. O «amor caseiro» talvez seja o mais difícil, pois exige contínuo exercício do saber escutar. Com esta ginástica familiar, soube Jesus «ouvir e questionar» os doutores do templo e «compreender a incompreensão» entre ele e os próprios pais

As leituras de hoje dão importância a uma família «equilibrada» como dois pratos de balança sob tensão. Assim terá sido a família de Jesus, assim terá amadurecido e se terá condimentado a missão de Jesus Cristo.

27-12-2015


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