Liturgia Pagã

 

Faz bem cantar ao desafio

4º Domingo do Advento (ano C)

1ª leitura: Profeta Miqueias, 5, 1-4

2ª leitura: Carta aos Hebreus, 10, 5-10

Evangelho: S. Lucas, 1, 39-47

 

Com audiência bem disposta e verdadeiro génio artístico, não há nada melhor. Como todas as coisas, pode descambar. Mas nestes casos, lá estão os assobios da assistência para deitar sal no destempero.

Para ser arte, requer imaginação, à vontade e muita atenção ao que vem sendo dito. Assim reforça ou contradiz a quadra anterior. É importante não ser mera repetição, embora a mesma ideia possa ganhar vida nova, quanto mais não seja devido ao modo cativante em que é cantada.

Outra coisa não fizeram os cantadores da liturgia de hoje: Cantou o Miqueias, cantou a Judite e o velho Isaías; cantou o Zacarias e um senhor desconhecido mas grande admirador de Paulo de Tarso… e não faltou aquele médico erudito mas tão simples e simpático, lembrando comovido os cantares da Mãe de Jesus e da prima Isabel.

Toda a gente gostou do espectáculo e o costume pegou: pelos tempos fora, em memória de Jesus Cristo, não faltam seguidores, simpatizantes e até meros curiosos, a cantar e a encher o mundo de arte e poesia, despertando aquele sorriso dos humanos que encarna o sorriso de Deus.

Miqueias (1ª leitura) canta a história do Messias enraizado na nossa história e nos sonhos longínquos da humanidade. Pessoa simples, do séc. VIII a. C., teve que enfrentar sozinho a corrupção do seu tempo (dos políticos, sacerdotes e falsos profetas), confessando claramente que só tem apoio no Senhor (3,8). A sua notória sensibilidade ao sofrimento do povo e a um Deus que tanto se entristece com a injustiça como abre os mais audaciosos horizontes de alegria e de paz, faz dele um personagem bem simpático e a condizer com a época do Natal.

Judite, cujo nome significa «a judia», ficou famosa pela valentia equilibradamente alicerçada em Deus. As suas qualidades fizeram dela a imagem da mãe de Jesus. Terá vivido cerca de 600 anos a. C. e dá o nome a um dos livros da Bíblia, onde se encontram vários cânticos. O «Magnificat» e a liturgia dedicada a Nossa Senhora inspiram-se nalgumas passagens deste livro. Fica bem neste grupo tão inspirado.

Nem convinha pôr de parte Zacarias (evangelho), mais conhecido pelo brilhante solo sobre o seu filho João precursor de Jesus (Lucas, 1, 67-79) e a que deu troco o velho Simeão (Lucas, 2, 29-35).

Quanto ao «senhor desconhecido», é o autor da carta aos Hebreus (atribuída erradamente a S. Paulo), onde se canta em grande estilo o mistério e a condição gloriosa de Jesus. 

Mas há mais gente na roda:        

Isaías, o majestoso profeta das dores e alegrias, canta logo à entrada da liturgia de hoje. Viveu no séc. VIII a.C., e no séc.VI apareceram dois profetas que lhe retomaram o refrão (ficaram conhecidos como «o segundo» e «o terceiro» Isaías). O versículo 8 do capítulo 45 (dedicado a Ciro como salvador do cativeiro de Israel), da autoria do «segundo Isaías», ficou célebre, na liturgia, com a beleza do texto latino e do canto gregoriano. Conhecido pela palavra de abertura «rorate», é um grito de esperança e de júbilo: que o Justo venha dos céus como a chuva e o orvalho fertilizantes; e que a terra ajude a germinar a salvação. (Apesar dos invasores transgénicos da justiça, Deus acha sempre que há condições para uma cultura sadia…).

A ligação entre Jesus e João (o Baptista) não podia ser mais antiga: Quando Maria e Isabel se encontraram, ambas grávidas, a profunda alegria de ambas foi tema do maior sucesso do «médico das cantigas» (S. Lucas), que aproveita para exaltar o maravilhoso papel das mães.

Os momentos de festa e alegria são verdadeiro sinal de que não somos feitos para a tristeza. E no Natal, caímos na conta de que «a memória de Jesus Cristo» não é beatice nem atrapalhação das coisas boas da vida, mas sim a chamada a juízo sobre o que fazemos para garantir o melhor futuro da Humanidade.

Cantar ao desafio faz bem ao corpo e à alma. Desenvolve a criatividade, a atenção aos outros e o gosto de conviver, expressos na arte de rimar e de pegar na deixa. E que se digam coisas bem sentidas, daquelas que fazem gritar: «bem mandada!»

O perigo é ficar-se pelas quadras lindas. O desafio das cantigas tem que passar para a vida, onde nos cabe pegar no que foi e vai sendo feito – para ainda fazer melhor e atempadamente corrigir.

Como aconteceu com Jesus, o Mundo é o nosso berço e o berço dos nossos sonhos. Um berço bem feito? Depende da nossa maneira de trabalhar. Se cantarmos ao desafio com alma (como Jesus cantou, connosco e com Deus), quantos braços não ficarão livres para construir a Casa de todos nós, onde se embalam os sonhos que enchem o Mundo de beleza e alegria e dão energia para um eficiente «trabalho em coro»?

20-12-2015


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