34º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Livro do profeta Daniel, 7, 13-14
2ª leitura: Livro do Apocalipse, 1, 5-8
Evangelho: S. João, 18, 33-37
Dizem que já passou o tempo das «realezas», pese a continuidade de
dinastias reais no poder. Mas então, por que é que se fala tanto de
reis? Ele é o rei do petróleo, o rei dos poetas, o rei dos fadistas,
o dos profetas, o do futebol… sem faltar o rei dos leitões! Sinal de
que o termo perdeu valor? Pois talvez não seja assim:
Todos estes «reis» só merecem o título no sentido de serem «os
melhores», os «genuínos», os detentores de uma nota positiva que os
realça. Usufruem da chamada «competência reconhecida». A um nível
mais profundo, são como símbolos vivos da perfeição num determinado
sector (ou símbolos da riqueza histórica de um país).
Vale a pena lembrar que o radical de «rei» (latim «rex») é o mesmo
de «reger» e «regra» (do indo-europeu «reg» = mover em linha recta);
já o radical de «King» («rei») provém do indo-europeu «gen»
(gerar), vincando a importância da estirpe: daí derivam «gene»,
«gente», «génio», «engenho» e o inglês «kind», que significa amável,
educado, de boa gente…
A Solenidade de Jesus Cristo Rei nasceu num ambiente de grande
instabilidade política e ideológica. Foi instituída em 1925 pelo
Papa Pio XI, que condenou o incipiente regime totalitário de Hitler
como incompatível com a liberdade e supremacia do «Reino de Cristo»,
único garante da «paz verdadeira».
Também as leituras foram escritas num clima de perseguição e
instabilidade: a perseguição aos Judeus que motivou «a guerra dos
Macabeus» (167-160 a.C.) e as grandes perseguições de Nero até
Domiciano, passando pela destruição do Templo por Vespasiano, no ano
70 (2ª leitura e evangelho).
Quanto mais instabilidade, mais desejamos «um rei como deve ser». Em
várias culturas e particularmente em Israel, o rei eleito recebia o
epíteto de «Filho de Deus», significando a responsabilidade perante
o próprio Deus, de cuja verdade e justiça passava a ser o
representante. A sua autoridade só era autêntica se defendia o bem
ou a «salvação» de cada pessoa do seu reino.
A 1ª leitura evoca a misteriosa figura de um ser com aparência
humana, chamado por Deus a presidir à orientação perfeita do
universo. Cabe à 2ª leitura reconhecer Jesus como a grande
testemunha de Deus, o cumpridor fiel das exigências dessa
orientação.
Jesus deve ter usado a expressão «Filho do Homem» no sentido
corrente de um ser pertencente ao género humano e quando muito como
uma figura celeste que julga o mundo (ideia desenvolvida por S.
Paulo); mas nunca se quis assumir como «rei», até porque conhecia o
erro perigoso de o considerarem como tal. Claramente se afasta da
promiscuidade com os poderes terrenos. No evangelho de hoje, Jesus
não discute com Pilatos se é rei ou não. Desvia a atenção para o
essencial: a missão para anunciar o «reino» de Deus – um «reino» em
que não há a força das armas mas sim a força da verdade. Nesse
sentido foi escolhido por Deus como «Filho muito amado» para nos
«guiar» (ou «reger») pelo caminho da verdade e da justiça.
Infelizmente, a grande importância e poder terreno da «Igreja de
Roma» (o mais prestigioso centro do cristianismo) tornou-a muitas
vezes uma «pedra de tropeço» («escândalo») e não um grito e exemplo
a favor da verdade e contra a corrupção. Por um lado, o poder
político sempre teve muito interesse em se servir da religião; por
outro lado, muitos Papas, Bispos e teólogos não resistiram à
tentação da riqueza e do poder, acabando por fomentar a vaidade, a
adulação, o servilismo, perseguições e guerras.
O «reino» de que fala Jesus «está dentro de nós» se livremente
aceite. Esta interioridade exige meditação e juízo crítico,
independente de pressões dos grupos de poder. Uma Igreja rica de
interioridade favorece a evolução do pensamento crítico, até para
poder responder às inquietações do «mundo».
A celebração de «Cristo Rei do Universo» não é pois o desfile de um
exército orgulhoso, com tropas de elite (presunção de algumas
facções cristãs). É sim enfrentar a pergunta: temos coragem para
seguir a coragem de Jesus Cristo? O «amor» que ele apresentou como
cerne do seu testamento não é uma lamechice: é o esforço quotidiano
para defender a dignidade da vida humana, sem fugir às exigências da
autêntica liberdade fundamentada na verdade e na justiça – o esforço
para reflectir e discutir qual a maneira de converter até as mais
simples acções num cuidar consciente e contínuo da nossa universal
«casa comum» (Laudato si’),
A reconversão das acções quotidianas é muito eficiente porque a
frequência gera novos hábitos capazes de pressionar até os grandes
órgãos do poder.
Para que este cuidado seja realista, bem informado e entusiasmante
(pois engloba todos os nossos grandes problemas), precisa de ser
reflectido e analisado. Porque não ser tema de conversas informais?
E será que este esforço tem impacto visível nas Dioceses, Paróquias,
nas várias organizações religiosas e grupos de reflexão? Ou nos
ficamos por ir alegremente no cortejo de «Cristo Rei»? |