23º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Isaías, 35, 4-7
2ª leitura: Carta de S. Tiago, 2, 1-5
Evangelho: S. Marcos, 7, 31-37
Em questões de testamento, não faltam as mais bizarras situações de
conflito e mesmo verdadeiras lutas. Ora tanto se faz e refaz que se
torna duvidoso; ora desaparece; ou, pior ainda, meio mundo aparece a
reclamar-se como único legítimo possuidor da versão definitiva.
E que se passa com o «testamento» de Deus? Ao que parece, cada
religião se arroga o título de legítimo intérprete e herdeiro de
Deus; e para os cristãos até há dois testamentos em pé de igualdade…
Não falta trabalho aos exegetas dos textos sagrados e
particularmente aos bandeirantes dos movimentos ecuménicos!
Isaías teve que se esforçar doidamente para traduzir os murmúrios de
Deus – e deixou-nos espantosos poemas de esperança dignos de
verdadeiro testamento de Deus. Quando aparece Jesus a falar como
toda a gente, Marcos pressentiu que se tratava de quase uma
revolução: mas o problema era mostrar que o «novo testamento» se
pode rever no «velho», como fruto amadurecido.
«Testamento» é um termo latino que traduz o grego «diatheke»,
conceito que tanto significa «última vontade» como «aliança».
Testamento requer pois fidelidade. Mas sabemos bem demais como a
«fidelidade» se pode transformar em fundamentalismo catastrófico no
campo político ou religioso…
Porém, ninguém se pode arrogar como único e verdadeiro conhecedor
das «vontades de Deus». No próprio cristianismo, a «fidelidade a
Cristo» não pode ser a fidelidade a pretensos «testamentos» de
Cristo: só pode ser a fidelidade ao seu exemplo de dedicação a Deus
que se traduz na dedicação ao bem dos outros, com a confiança e
simpatia natural de quem procura o alicerce mais seguro para o
projecto de vida. A sempre nova e sempre velha aliança de Deus
manifesta-se, ao longo da Bíblia como vontade de um sólido bem-estar
para toda a humanidade.
(É verdade que «simpatia» começa a não ser moeda corrente nas
relações humanas. Mas querer o bem dos outros não será a mais
garantida e agradável forma de «progresso sustentável»?).
A
cura do surdo-mudo do evangelho de hoje, na opinião de peritos,
pertence ao «testamento» que S. Marcos queria deixar à comunidade
cristã. Reflecte claramente um rito de iniciação: a expressão
aramaica «effathá» («abre-te») entrou no antigo ritual do baptismo
(não sem o risco de ser olhada como «palavra mágica», como se
bastasse pronunciá-la correctamente sem ter que fazer nada). A cena
começa por uma «entrevista personalizada», a sós, onde transparece a
intimidade de Jesus com Deus e a sua tristeza perante o sofrimento
humano. Jesus aplica os dedos nos ouvidos do surdo como que para os
abrir e solta-lhe a língua com o poder dissolvente da saliva.
Servindo-se desta encenação, deu exemplo de como é preciso utilizar
eficazmente os meios ao nosso alcance para bem da Humanidade.
Os relatos de «coisas que merecem a admiração» (ou «milagres»)
reforçam a ideia de que o «reino de Deus» é o reino da integridade
da pessoa humana – harmonia resultante da saúde corporal e mental
com a convivência perfeita entre os seres humanos. Tiago é grande
defensor das «relações humanas» respeitadoras da integridade das
pessoas e sem fazer juízos baseados no agrado ou desagrado do
aspecto exterior. (Condena particularmente a deferência para com os
ricos e poderosos, independentemente do valor das pessoas «ricas» ou
«pobres». É muito importante notar que a riqueza é um bem importante
na Bíblia, mas como diz o velho provérbio «nada pior do que a
corrupção do que é muito bom». A riqueza e o poder tanto servem para
o mal como para o bem!).
Jesus encarna a «preocupação» de Deus pela efectiva «salvação» da
humanidade: o nosso «velho mundo» é afinal um mundo a fazer-se
sempre «novo», mais justo e mais saudável (1ª leitura) – mas não por
um toque de magia por mais devota que pareça: só com o nosso
trabalho.
Depois da cura do surdo-mudo, conta o evangelho que toda a gente
proclamou: «tudo o que ele faz é admirável!» Também para os autores
do Livro do Génesis, Deus viu que tudo o que existia era mesmo muito
bom! (Génesis, 1, 31). Tal como a recente encíclica «Laudato si!»
Cabe-nos investir bem. Como dizia um «graffito» num muro velho de
Coimbra, no final dos anos 70: «é bom ser bom»… |