Liturgia Pagã

 

«Muita parra e pouca uva»

22º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Livro do Deuteronómio, 4, 1.2.6-8

2ª leitura: Carta de S. Tiago, 1, 17.18.21.22.27

Evangelho: S. Marcos, 7, 1-8.14.15.21-23

 

Quando as coisas correm mal, bem gritamos pela polícia. Mas quando ela chega, passamos a querer vê-la pelas costas… Medo ao fantasma da autoridade? Preguiça para pensar sobre o que é «autoridade a sério»? Disto já se falou noutros textos: muito sinteticamente, tenhamos presente que o conceito de «autoridade» deriva de «aumentar»: desenvolver o que é positivo e nos faz progressivamente mais felizes.

Que diríamos se nos surgisse uma autoridade que tudo vê e tudo sabe? Capaz de ordens tão perfeitas que não podiam ser alteradas?

Pois os autores do livro citado na 1ª leitura pareciam não desejar outra coisa: deram até ao livro o nome de Deuteronómio – que significa «segunda lei», uma lei que pretendia reproduzir fielmente a sabedoria do próprio Deus.

Verdade verdadinha, a ânsia de poder absoluto ainda hoje continua tanto nos nossos «moderníssimos» governos como nos grandes potentados económicos e até nas estruturas religiosas. E ai de quem se atreva a dizer o contrário! Às vezes, nem é seguro pôr a medo um dedo no ar…         

Outra verdade verdadinha é que abusar do poder é sinal de fraqueza, de não possuir verdadeira autoridade. A grande força de Jesus Cristo revelou-se na clareza com que apela à livre decisão de quem o quer ouvir – e uma decisão assente no projecto individual e nas possibilidades de cada qual. O evangelho de hoje é deveras notável ao desmascarar a fuga à responsabilidade pelos nossos actos. Não são as leis ou tradições (por boas que sejam) que nos fazem bons ou maus.

Na realidade, porém, o Deuteronómio (escrito no séc. VII a.C.) tem o valor de autêntica «revisão constitucional»: retoma as linhas de força da tradição oral e escrita, procurando a melhor concretização dos grandes princípios. É nele que Deus é apresentado como o único Senhor, perante quem não podemos ser fingidos nem com nós próprios nem com os outros.

Deus é reconhecido como quem instituiu a dignidade humana: podemos querer ou não a «ordem» que nos é proposta, mesmo se em nome do próprio Deus. Compete-nos escolher e agir de acordo com o sentido de justiça disponível no momento. Numa perspectiva religiosa, é a própria «Sabedoria de Deus» que nos dá capacidade para alterar o «status quo», sempre que esteja claramente em questão um bem maior; dá-nos a sabedoria de escutar as opiniões mais diversas, ponderar os argumentos, admitir a razão dos outros mesmo quando a contra-gosto e recusar a «força sem autoridade». Mas se nos ficamos pelo amontoado estéril de reuniões e burocracias… que será da «uva»?

Aliás, as evoluções religiosas e morais patentes na Bíblia mostram que mesmo as palavras classificadas como «divinas» estão sempre sujeitas às limitações da comunicação humana (particularmente se provêm de épocas e culturas diferentes) e portanto não são definitivas. O próprio Jesus só podia falar e viver de acordo com os parâmetros do seu tempo e cultura.

Apurando as nossas palavras é que nos podemos aproximar mais ou menos de Deus. E S. Tiago, citado na 2ª leitura, não se cansa de chamar a atenção para o critério de «próximo de Deus»: ajudar concretamente e de coração o próximo, nunca esquecendo os que se encontram em situações mais penosas.

É muito mais cómodo seguir rigorosamente um código de boas maneiras do que ser de facto uma pessoa bem educada. Acontece que na história religiosa da Humanidade Deus só é compreendido e amado na medida em que nos preocupamos pelos outros.

 Se apenas enchemos a boca de bons propósitos, se não reflectimos sobre o que significa ver Deus como alicerce da nossa dignidade (evangelho), acabamos mesmo por merecer o adágio deste tempo de vindima: «muita parra e pouca uva».

30-8-2015


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