24º Domingo do tempo comum (ano B)
1ª leitura: Isaías, 50, 5-9
2ª leitura: Carta de S. Tiago, 2, 14-18
Evangelho: S. Marcos, 8, 27-35
«Todos temos um pouco», não é? E ainda bem: se não tivéssemos
nadinha, não nos entendíamos uns aos outros… e nada saberíamos
ganhar com ter ao nosso lado quem é muito poeta e muito louco. O
importante é mesmo ter das duas coisas: «poeta» é aquele que tem a
arte de dizer e fazer coisas novas, dando vida à harmonia das
coisas; «louco» é aquele que parece ir contra ou ir para além desta
medida e harmonia. Ora os nossos sonhos de ventura e aventura são
arrojadamente mais humanos se nascem do casamento entre esta
«loucura» e «poesia».
Há pessoas que não andam neste mundo. Nem sequer se preocupam (será
porque ainda não o sentem na pele?) com desmaranhar a injustiça –
aldrabices na construção, compadrios e subornos nas autarquias e
ministérios, «imunidade» dos poderosos que atropelam as leis
elementares, serviços públicos ou privados que não se interessam
pelas pessoas… e um sem fim de atentados diários, por vezes cruéis,
contra a pessoa humana.
Mas há pessoas «de outro mundo» que não desarmam de modo algum. E
que gritam bem alto que ser bom é agir bem (2ª leitura) – tão alto
que por vezes são tratados como «desgraçadinhos» (na opinião de
alguns «bem instalados» ou de quem não está para se ralar) e chegam
a dar a vida pelo ideal a que reconheceram o maior valor.
Muitas religiões têm «profetas» infractores dos códigos correntes de
sucesso e felicidade. E não interessa julgar qual deles será «o
maior» no «reino de Deus» (Marcos, 9,34-37). A atitude mais sábia e
mais cristã é trabalhar de braço dado com todos aqueles que se
dispuseram a escutar o que quer dizer «um mundo de justiça» com a
loucura e poesia do espírito de Deus, onde não há falsidade. A 2ª
leitura sublinha que são as nossas acções e não os formulários
doutrinais que provam se somos ou não «colaboradores de Deus».
Também Isaías foi um profeta desajustado. Queixa-se de que os
contemporâneos lhe fazem as piores patifarias, mas não deixa de
acreditar na fidelidade de Deus – o único verdadeiro defensor da
vida. E por isso é capaz de resistir ao sofrimento causado pela sua
dedicação.
Jesus foi ainda mais além: evitou jogadas de vaidade ou interesse e
enfrentou a angústia de se ver ameaçado e finalmente levado à morte,
deixando um claro testemunho do verdadeiro valor da vida, que tem o
fruto firme e discreto de alegria e paz.
A
acreditar em S. Marcos, Jesus terá dito: «Quem me quiser seguir,
negue-se a si mesmo e pegue na sua cruz». É de louco, não é? Mas
também de poeta. Negar-se a si próprio é não alinhar com uma vida
irracional, sem projectos fundamentados, incapaz de ver além do
prazer imediato facilmente enganador e raramente produtivo para o
bem da Humanidade.
Pedro não gostou da conversa de Jesus e quis dissuadi-lo do que
parecia loucura e poesia a mais. E não podemos deixar de lhe dar a
razão quanto ao valor mais caro a um ser humano: defender a própria
vida e viver o melhor possível (o «reino de Deus» é a plenitude do
«bem-estar», como defendeu o próprio Jesus). Se Jesus chamou a Pedro
«Satanás», foi por este fazer o jogo de tentador, preso à mesquinha
noção corrente de «vida com sucesso».
Ora o evangelista joga com o sentido do termo hebraico para «vida»:
tanto significa o nosso estado de tensão com a morte, como significa
«o verdadeiro eu». Que interessa viver arrastado por estratégias de
sucesso quando se destrói o prazer de viver a própria vida?
«Levar a sua cruz», por seu lado, ganhou por vezes um sentido de
fatalidade, como se fôssemos lançados por Deus a um «vale de
lágrimas» e nos restasse apenas entrar nas igrejas para chorar
(desabafar faz bem, quando limpa os olhos da alma para vermos a
janela que Deus abre ao fechar-se uma porta…). Porém, o sentido
forte da expressão é o de força empreendedora capaz de gerir as
dificuldades inerentes a um bom projecto. Ganha o sentido optimista
de concentrar energia para pegar na vida – mostrando aos outros como
se pode ser feliz «apesar de tudo»; e como todas as experiências da
vida, tanto negativas como positivas, podem ser aproveitadas para
formar os alicerces sólidos desse projecto que ilumina o prazer do
valor da vida.
Parece uma linguagem de loucos. Já agora, juntemos sem vergonha uma
justa medida de «poesia»… |