Liturgia Pagã

 

Dar bofetadas é uma arte

14º Domingo do tempo comum (ano B)

1ª leitura: Profecia de Ezequiel, 2, 2-5

2ª leitura: 2ª Carta de S. Paulo aos Coríntios, 12, 7-10

Evangelho: S. Marcos, 6, 1-6

 

Será que até S. Paulo atira para o Diabo a culpa pelo mal de que se queixa? Como se tivesse recebido uma «bofetada de Satanás», à semelhança da dramática e lendária figura de Job que invectivava a Deus, pedindo-lhe um sentido para o sofrimento que se abate sobre os homens, por muito bons que sejam ou queiram ser. Um e outro caíram na conta, nessa experiência de dor, que nós não somos amados por Deus só quando irradiamos saúde ou quando somos socialmente notáveis. Quando a gente se encontra na mó de baixo, é então que pode ver mais claramente que Deus não nos ama por sermos «bonitos» – mas porque nos trata como «filhos» capazes de colaborar em estabelecer na terra o tal reino de paz e de justiça.

Apresentar a Deus os nossos problemas é saudável sob vários aspectos: é um desabafo, é um exame das nossas capacidades de gerir o que nos inquieta, é um esforço da mente total para encontrar sentido na vida, é solidificar a confiança numa relação pessoal – com as características do mais extremo desporto radical: lançar-se para aquilo que não vemos nem podemos ver com precisão, e que neste caso é alguém que nos quer o maior bem e exigindo a atitude desportiva tão bem expressa na sabedoria popular: «Deus ajuda a quem se ajuda».

Na verdade, se Deus nos desse as respostas pretendidas, será que teríamos avançado no campo das artes e das ciências, da acção social e das próprias relações humanas? As grandes inspirações, intuições e descobertas, o  trabalho aturado (tantas vezes escondido)… devem muito ao estímulo do aguilhão da dor, da tristeza, da desilusão, e sobretudo de uma insaciável «fome e sede» de verdade e de justiça.

 A vida espiritual cristã tem sido vista como um combate entre a «Bandeira de Jesus Cristo» e a «Bandeira de Satanás» – cenário imaginoso que não deixa de corresponder à experiência da vida como luta no terreno, onde é difícil escolher o que é melhor.

            Com efeito: a Bandeira de Jesus Cristo será mesmo a melhor? Que dizem os Governos e Partidos políticos? Que nos dizem os Planeamentos educacionais ou o vastíssimo leque de investigação nas «ciências exactas e humanas»? Quando se afoitam a escolher, será de facto uma escolha livre, fundamentada e «rica» em perspectivas? Como se aplica em problemas graves e interligados como os de ecologia e economia? E que se faz com a filosofia, ética, política…?

            Concretamente, cada juiz, professor, sacerdote ou cada pessoa consagrada à «causa de Deus» (=«causa do Homem») precisa de ser «pro-feta» (=falar em nome de ou em frente de): representar as exigências da verdade e da dignidade humana, corajosa e honestamente.

Têm que saber «dar bofetadas» com a arte e respeito de quem quer bem. Mas também é preciso ter sabedoria para «levar bofetadas»…

Há bofetadas que de bom grado atribuíamos a Satanás – como as vindas do Fisco… Pondo estas de parte, pois serão julgadas por uma economia verdadeiramente humana, quantas vezes não se trata de comedidas e justas bofetadas dadas por gente que nos conhece de ginjeira? Nem precisam de ser «santos de casa»…

Neste sentido, todos devíamos estar preparados para «dar e levar». Desperdiçamos muitas palavras sábias – porque não vêm de alguém com uma posição social “aceitável”, do “nosso nível”, e sobretudo porque nos põem em cheque! Ou aceitamos porque vêm de figuras altamente mediáticas – mesmo que sejam incapazes de ver e sentir a vida real.

Esquecemos que pode haver muitos «profetas» pela nossa rua e pela nossa casa; e que Deus se revela de modo especial em quem não é vaidoso e naqueles que sofrem. São de certo modo a bofetada da justiça à sociedade injusta. São «bofetadas» que nos acordam para olhar bem à volta e reconhecer, como lembra Ezequiel, que é duro ouvir um «profeta» mas muito mais duro ter a coragem de defender a verdade…

05-07-2015


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