A ARTE-XÁVEGA DA BEIRA LITORAL
E AS SUAS EMBARCAÇÕES
(1)
O tipo de pesca artesanal e heróica que
sobrevive na Beira Litoral, de Espinho e Ovar até Pedrógão e Vieira,
hoje chamado oficialmente "Arte-Xávega" (e, até recentemente, muitas
vezes erroneamente chamado "Xávega"), é uma arte de cerco e alar para
terra, herdeira da que, nos séculos passados, foi chamada "arte de
arrasto para terra", ou simplesmente "Arte", quer pelos próprios
pescadores, quer por quem melhor e mais pioneiramente os estudou,
Constantino Botelho de Lacerda Lobo em 1812, ou o CMG António Arthur
Baldaque da Silva em 1891.
QUESTÕES TERMINOLÓGICAS
Chamar "Xávega" a este tipo de pesca –
como se chamava no Algarve a uma outra relativamente parecida (também,
muitas vezes, de arrasto para terra, mas bastante diferente, com redes
muito mais pequenas, com embarcações totalmente distintas, com lances às
vezes para a embarcação e não para terra, etc.) – é um erro que foi
massificado através da simples via burocrática da normalização da
terminologia para efeitos administrativos e fiscais, e depois ganhou
oficialização "científica", mais prestigiada, em Lisboa, a partir dos
circulas do Museu de Etnologia, cujos autores falharam em relação a esta
matéria da "Arte" da Beira Litoral, deixando-a contaminar pelas pescas
aparentadas da "Xávega" algarvia (oriunda de Málaga e do sul).
Esse erro, apesar de um ou outro autor
local e/ou mais sabedor não o ter nunca aceitado (caso do CMG Fernando
Alberto Gomes Pedrosa, ou de Ana Maria Lopes, em (Ílhavo, ou de Maria
Adelaide Godinho Arala Chaves, no verdadeiro centro da irradiação antiga
deste tipo de pesca, o Furadouro-Ovar), havia-se no entanto espalhado e
generalizado ao longo do séc. XX, e estava a ser cada vez mais repetido
(até entre os próprios pescadores, os menos velhos...), por causa de ser
massificado pela aculturação devida à documentação oficial, e ao eco dos
investigadores, publicistas e jornalistas. Para além, claro, da escola
oficial de pesca, que, em Lisboa, durante décadas, "ensinou" aos
pescadores mais novos que a pesca e a rede a que os seus pais e avós na
Beira Litoral chamavam só "arte" se chamava, em vez disso, "xávega",
como no Algarve...
A correcção, remetendo não só para o
testemunho dos pescadores mais velhos mas também para a autoridade dos
autores mais antigos e de mais indubitável competência que haviam
estudado e publicado sobre a matéria (sobretudo o CMG Baldaque da
Silva), foi feita a partir dos anos 90 do séc. XX por membros do Centro
de Estudos do Mar Luís de Albuquerque (CEMAR), na Figueira da Foz e
Praia de Mira, sobretudo João Pereira Mano e o autor destas linhas.
AS EMBARCAÇÕES
A "Arte" da Beira Litoral, nos areais de
Espinho à Vieira – com os seus característicos e fascinantes "Barcos do
Mar" (assim chamados a norte do Mondego), ou "Barcos da Arte" (a sul
desse rio), em forma de "meia-lua" – irradiou no passado para sul,
chegando a estabelecer núcleos em areais semelhantes na Costa de
Caparica e Santo André. Não é verdadeiramente uma rede de arrasto, no
sentido moderno da palavra (e, por isso, muito pouco destrutiva em
termos ambientais). Trata-se de redes envolventes-arrastantes (só à
superfície...) constituídas por saco, mangas, e cabos, que operam no
mar, sem portos (!), em litorais portugueses arenosos e baixos (nas
costas, particularmente desabrigadas, do Ocidente Peninsular), e são
lançadas ai por embarcações afiladas, da família das Bateiras (!), de
fundo plano (!), sem quilha (!), e sem leme (!), "que erguem até ao
céu as proas e os popas desmedidos" (como escreveu Raul Brandão).
Uma estranha embarcação, única no mundo, de uma beleza quase irreal, que
mais parece ser feita para ser vista do que usada (mais uma escultura do
que uma embarcação), mas que, na verdade, foi mesmo criada pelo próprio
uso (a sua função originou a sua estrutura), cujo desenvolvimento,
local, julgamos derivado de uma selecção natural que se poderia dizer
darwiniana...
"Novos problemas originam novas
soluções", uma embarcação capaz de varar a rebentação ("surf”) para
entrar no mar, e deslizar nessa mesma rebentação para regressar (e, por
fim, capaz de varar em terra, na areia da praia). A embarcação dos "Vareiros"!...
Surfistas... Mas que teve de crescer (enorme, e forte...). para fazer
frente a tanto mar como o da Costa Ocidental, face a face com a
rebentação assassina – na "pancada do mar", no "lago do mar" (ou no "mar
das viúvas"), e, pior ainda, no "mar da cabeça"!... Nos litorais da Ria
de Ovar e de Aveiro-Ílhavo, os Vareiros em geral e os Varinos em
particular criaram a sua embarcação "sozinhos com Deus e o Mar".
Uma gente formidável, com a sua fabulosa embarcação (a que chamei "os
mais pobres dos pobres, com o mais belo barco do mundo"...).
O Museu de Marinha, em Lisboa, conservou
e ainda hoje expõe, lado a lado, o "Santo António", um "Barco do Mar",
da "Arte" da Beira Litoral, e o "São João Baptista", um "Barco da Xávega",
do Algarve (plano, e mais pequeno, igual aos da "Jábega" de Málaga e da
Andaluzia). Percebe-se imediatamente a diferença; se alguma vez um
"Barco da Xávega", do Algarve, tivesse sido posto nos litorais
ocidentais desabrigados, como o de Palheiros de Mira, provavelmente
partia-se no primeiro dia.
O "Santo António" era da Torreira;
grande, de quatro remos e 42 homens, era irmão gémeo do "São Paio",
também da Torreira, que foi para Inglaterra, para o Exeter Maritime
Museum (que tinha a maior e melhor colecção de embarcações de pesca
portuguesas, e que até usava a silhueta deste barco como seu logotipo,
mas que fechou portas em 1997). Daí poderá ter ido para a Escócia, para
o Eyemouth Maritime Museum, que fechou portas em 2017; desconhece-se,
por isso, o seu paradeiro actual.
Já não existe nenhuma outra grande
embarcação semelhante em operação na costa portuguesa. Se o "São Paio"
foi destruído, um louvor à Marinha Portuguesa, que salvou o último
grande "Barco do Mar".
Quanto à possível origem desta invulgar
embarcação portuguesa e europeia, os autores dividem-se. O Arq. Octávio
Lixa Filgueiras considerou-a descendente de canoas de tábuas de origem
mesopotâmica (aparentada com um barco de Ur); já Fernando Alonso Romero
considera-a um misto de características atlânticas e mediterrânicas,
céltico-romana. Carlos Carvalho, Fernando Simões Dias, Senos da Fonseca
e o signatário consideram-na uma criação local, nascida na Ria de Aveiro
e de lá saída para enfrentar a dificuldade do mar; daí a referência
acima a Charles Darwin.
ORIGENS
A "Arte" real, ou "Arte" grande (à
maneira catalã), substituiu as redes locais portuguesas mais pequenas,
chamadas de "chinchorros" (e nunca "xávegas”) nos litorais da Ria de
Aveiro e da Beira Litoral, do Furadouro a Buarcos na segunda metade do
séc. XVIII. Há nela uma nítida influência galega (e oriunda da própria
Influência, então, da Catalunha na Galiza). A partir de 1776 veio a ter
no Furadouro o seu principal centro, com dezenas de campanhas em
actividade. Depois estendeu-se primeiro até á Vieira, depois até aos
areais da Costa de Caparica, com pescadores do Norte, idos dos litorais
da Ria de Aveiro, abastecendo Lisboa de sardinha.
No séc. XIX, já no tempo do Liberalismo,
de Espinho à Vieira esta actividade pesqueira prosperou e cresceu,
levando ao aumento do tamanho das embarcações, das redes, e à introdução
da tracção animal (com os bois dos lavradores do interior), para alar as
enormes redes. E por isso o lusitanista francês Ferdinand Denis
exclamou: "Estranho país, onde os bois lavram o mar!"...
No séc. XX continuou a crescer, embora,
na sua segunda metade, cada vez mais "crismada" com terminologia errada.
Foi com a sua terminologia verdadeira que foi descrita por Raul Brandão
em 1922-1923 em Palheiros de Mira, e filmada por Paulo Rocha em
1965-1966 no furadouro. A decadência veio no último quartel do séc. XX.
Não tão esmagadora como a da "Xávega" algarvia, mas, em todo o caso,
fez-se sentir. E assim se chegou ao presente.
COMBATENDO A DECADÊNCIA
A "Xávega", do Algarve, agonizou desde os
anos 70 do séc. XX, asfixiada pelo turismo e especulação imobiliária, e
está hoje quase completamente extinta; mas a "Arte" da Beira litoral,
agora oficialmente dita "Arte-Xávega", continua viva, pois é praticada
por muitas centenas de homens e mulheres, com as suas famílias no
litoral oeste continental – quer recorrendo às belas e inconfundíveis
embarcações em forma de "meia-lua" das praias de Espinho até à Vieira
(agora centrada na Praia de Mira, antigamente no Furadouro), quer com
embarcações mais polivalentes e incaracterísticas na Costa de Caparica
(para onde foi levada desde a Beira litoral).
Seria necessária uma inteligente junção
de esforços para todos trabalharmos pela sobrevivência e salvaguarda
deste invulgar tipo de pesca no mar, único no mundo, em que estes
pescadores portugueses (tecnicamente "surfistas" e de uma coragem
denodada ao enfrentarem a rebentação assassina do Atlântico Norte) não
usam leme, nem instrumentos, nem cartas, nem portos...!
No seguimento da movimentação das
comunidades locais e dos próprios pescadores (que em 2013 criaram uma
associação representativa, a nível nacional, com sede na Praia de Mira),
o Governo criou a 07 de Janeiro desse ano uma Comissão de
Acompanhamento, na Direcção Geral de Recursos do Mar (do Ministério do
Mar) e a Assembleia da República aprovou, a 07 de Junho, a Resolução n.º
93/2013 (D.R. 08.07.2013) em que recomenda ao Governo a valorização
desta arte e o seu enquadramento, no futuro, num "regime derrogatório
para artes de pescas imemoriais", devido às "especificidades desta arte
ancestral". O signatário integrou essa Comissão de Acompanhamento na
qualidade de observador/convidado por presidir ao CEMAR. A dita Comissão
produziu, em Junho de 2014, um "Relatório de Caracterização da Pesca com
Arte-Xávega", o momento mais marcante do esforço colectivo para se
salvar este tipo de pescas tradicionais portuguesas. [vide:
https://drive.google.com/file/d/OB2xiUdRpMxk6SWxYbEkwSVdi00]. O texto "ASPECTOS HISTÓRICOS DAS COMUNIDADES DOS PESCADORES DA ARTE-XÀVEGA", que constitui o respectivo Anexo" é da responsabilidade
do signatário.
REPTO DA CLASSIFICAÇÃO
Esta pesca portuguesa de cerco e alar
para terra no grande Mar Oceano Ocidental é uma realidade humana,
sociológica, tecnológica e civilizacional absolutamente única e
fascinante, que não tem equivalente em qualquer outra parte da Europa e
do Mundo; seria um enorme crime deixá-la morrer. Em Dezembro de 2012 foi
feita pelo CEMAR, na Praia de Mira, a proposta pública de que Portugal
venha a avançar a candidatura desta sua heróica faina a Património
Cultural Imaterial da Humanidade, na UNESCO.
Na sua pobre essencial idade, julgamos
que ela é a mais emblemática da Cultura Popular Marítima Portuguesa, e
ilustrativa da secular familiaridade dos Portugueses com o Mar.
É
um dos exemplos visualmente mais marcantes, e culturalmente mais
significativos – e, por isso, desde sempre, mais invocados e mais
utilizados como cartaz turístico e como paradigma – da Etnografia, da
História e da Identidade Nacional deste país.
Tão pobre. E, no entanto, o verdadeiro
símbolo, da verdadeira elegância, na paisagem geográfica e humana
portuguesa. É preciso salvá-la, ou, como antes havia dito Paulo Rocha, "erguer
um monumento à sua glória".
Alfredo Pinheiro Marques
Director do Centro de Estudos do Mar Luís
de Albuquerque – CEMAR
(Figueira da Foz – Praia de Mira) |