EPISÓDIOS E ANEDOTAS
III
A PÁTRIA HONRAI…
(Concluído do número antecedente)
(1)
ÃO descansaram muito as duas embarcações, idas para
o sul com dispêndio de tão árduos labores e inauditos sacrifícios.
Incorporadas na esquadrilha, principiaram com o Neves Ferreira,
Bacamarte, Magaia e lncomati as trabalhosas
operações. Teria sido quase impossível construir-se a rede de postos
militares, com que Freire Andrade sufocou a rebeldia, sem o forte e
dedicado auxílio da flotilha. Duma vez a Sabre navegava do
Incanine para a Xerinda. Arrastava atrás de si uma longa cauda de
barcos, que tinham servido para estender a ponte de uma a outra
margem. Esses barcos deixados em terra, ao sol, durante muito tempo,
podiam comparar-se a cestos rotos. De hora a hora tornava-se
necessário estacar para os esgotar; finda esta tarefa, e quando o
comboio prosseguia na marcha, rebentava o reboque, mais adiante caía
um homem ao rio; os episódios, ora cómicos, ora trágicos, isto
sempre varejado pelas balas dos negros, sucediam-se com arreliadora
rapidez. Ao cabo de longas horas duma lide insana, atracaram à
Xerinda, e, quando era lícito gozar-se um pouco de folga, a
guarnição da Sabre foi exortada a estabelecer uma nova ponte para
ligar as duas ribas. Por este sucinto esboço se vê de que quilate
eram os serviços prestados pelos bravos rapazes.
De quando em quando vinha um acontecimento jocoso
alegrar as agruras desta existência acidentada e fatigante. Uma
noite, fundeada a Sabre a certa distância do posto militar da
Manhiça, um renhido tiroteio despertou os seus tripulantes. Era
evidentemente um ataque nocturno.
De bordo também queriam atirar; Ivens Ferraz não
consentiu. Depois de meia hora de aturada fuzilaria tudo caiu no
mais absoluto silêncio. Na madrugada seguinte, recebia o comandante
da lancha uma mensagem, pedindo para emprestar, ao posto, o caldeiro
das praças para se cozinhar o rancho em terra.
– Então que fizeram aos seus? – perguntou admirado o
Ivens.
– O fogo desta noite... – balbuciou o emissário.
– Que tem uma coisa com a outra ? – insistiu o
oficial de marinha.
– A cozinha fica fora dos parapeitos – explicou o
mensageiro; – de noite apareceram uns vultos daquele lado, as
sentinelas alarmaram-se, os tiros choveram dessa banda. Tachos,
caldeiras, quantos utensílios havia ali para cozinhar, todos se
transformaram num crivo ou se quebraram.
/ 422 / – Ah! percebo – comentou rindo Ivens –
voltou-se o feitiço contra o feiticeiro, em vez de danificarem os
negros, prejudicaram-se a si mesmo; agora têm que se sujeitar às
consequências enquanto não vier novo fornecimento. Comam aos grupos;
o nosso caldeiro não chega para todos.
E assim sucedeu durante alguns dias. Noutra ocasião a
Sabre largou do fundeadouro com quase tantos soldados de
transporte quantos os que o convés comportava, de pé. Na baía
sobrevém um temporal do sudeste; a lancha oscila como uma canastra;
a carga não podia ser pior para tão crítica eventualidade; de súbito
ergue-se um vagalhão enorme, entra pelo navio a barlavento e varre
tudo quanto encontra; os passageiros fogem todos espavoridos para
uma banda; a embarcação adorna desse bordo de modo assustador. Se
vem nova onda nem a intervenção divina lhe pode valer. Ivens toma
uma atitude enérgica e o pânico não se repete.
Os episódios surgem todos os dias, marcando com
balizas de gargalhadas ou de anseios as fases da campanha. Numa
tarde, o vento de sudeste sopra com tal violência, que só o golpe de
vista seguro e o sangue frio nunca desmentido da oficialidade da
Sabre, a livra dum naufrágio mortal. Noutra, numa viagem a
Xinavane, cortada de tropeços, a cada hora, por causa das
sinuosidades do Incomati, realiza-se uma caçada aos patos
mergulhões, tão ingénuos e tão pouco amedrontados, que se deixam
apanhar à mão e enchem sacos sobre sacos, proporcionando aos
marinheiros e aos seus amigos de terra farto banquete durante dois
dias. Noutra, num encalhe do rio, quando é empregada uma estralheira
para safar a lancha duma restinga, o aparelho incendeia-se e deixa a
embarcação a seco. Alijam-se do navio todos os pesos, a artilharia é
desmontada, e eis os incansáveis tripulantes metidos na água até a
cintura, a empregar prodigiosos esforços para arrastar o barco por
cima do baixio. Noutra, numa fuzilaria aturada da margem, vem uma
bala que penetra no mastro, precisamente na tangência do pescoço de
Ivens Ferraz.
Estes perigos, estas aventuras, quase sempre com um
cunho trágico, intercalam-se com caçadas ao cavalo-marinho, de carne
saborosa, logo retalhada, posta ao fogo e comida, com tentativas
para apanhar a laço, à moda dos gaúchos, mulas e cavalos que andavam
fugidos da coluna expedicionária, e que após canseiras e invenções,
qual delas a mais pitoresca e jocosa, se sumiam e continuavam em
liberdade, logrando as armadilhas e as esparrelas preparadas para os
colher.
A epopeia da Sabre e da Carabina,
começada na Zambézia, continuada no mar alto e concluída no tortuoso
e falso Incomati, tão difícil para a navegação como traiçoeiro nas
suas súbitas e aleivosas acometidas das margens, e uma das mais
belas e honrosas da marinha de guerra, rivalizaram, nos longos meses
da campanha, oficiais e praças, de quem mais corajosa e
dedicadamente enalteceria o lema
/ 423 / gravado nas rodas do leme:
«Honrai a pátria que a pátria vos contempla».
Guilherme Ivens Ferraz e Alfredo Caçador, os guarda-marinhas às suas
ordens e a guarnição bem mereceram do país, que lhes deve o
reconhecimento e o preito rendido a quem tudo sacrifica para o
tornar grande e respeitado.
*
* *
Resta-nos falar agora das operações da esquadrilha do
Limpopo, de fundamental alcance para a prestigiosa conclusão da
campanha e causa determinante do aprisionamento do famigerado
potentado de Gaza, régulo Gungunhana.
O vapor Neves Ferreira, comandado então pelo
intrépido primeiro-tenente Francisco Diogo de Sá, que tinha por
imediato o segundo tenente Valente da Cruz, partiu para o caprichoso
Limpopo na noite de 20 de Agosto. Só quem conhece a pérfida barra
desse quase impenetrável curso de água, é que faz bem ideia de
quanto o seu ingresso se torna arriscado. Os naufrágios ali, naquela
sucessão de parceis, de baixos, de cabedelos, aglomerados com
paciente malevolência, como se algum mau génio quisesse sequestrar
essa via fluvial ao convívio do mundo culto, contam-se por muitas
dezenas. Durante largo tempo foi abandonado o projecto de
estabelecer para aí comunicações marítimas. Os transportes
terrestres, em circunstancias normais, levavam, pelo menos, vinte
dias. O hábil capitão Marron, para quem a barra era tão familiar
como a casa em que moramos, lá perdeu o seu cutter com
quantos haveres possuía.
Descrever as catástrofes originadas pelas más
condições naturais daquele estreito e enredado corredor, significa
historiar a quase completa série dos sinistros marítimos do sul de
Moçambique.
Em fins de Agosto era rebocado pelo Neves Ferreira
a Capelo, do comando do primeiro-tenente Álvaro Andreia,
oficial pertencente a uma geração de impávidos e hábeis marinheiros,
com o auxílio do vapor Fax. Foi um lance dramático e arrojado
essa entrada. Diogo de Sá, narra-o sucintamente neste período do seu
relatório: «Chegado à entrada do canal, sempre com a Capelo a
reboque e o Fax navegando nas nossas águas, retrocedi e pus a
proa ao mar a fim de tentar a manobra de arriar para dentro a lancha
sobre uma espia. Achava-me, é claro, em cima da ponte, e nessa
ocasião acompanhado pelo primeiro-tenente Andreia e pelo meu
imediato, e, apoiado na opinião afirmativa destes oficiais, e
parecendo-me a barra tentável nas circunstancias críticas em que nos
achávamos, resolvi entrar. A Fax havia retrocedido também, e
um dos viradores de reboque rebentara quando o Neves Ferreira
aproara ao mar e a lancha dera um grande esticão. Assim, a toda a
força do vapor, empregando o azeite para abater o mar, procurámos o
azimute da entrada, pois não era fácil conhecê-la por haver
rebentação em toda a barra, e pelas duas horas e meia entrámos com a
lancha a reboque e o vapor Fax nas nossas águas. O Neves
Ferreira ainda chegou a assentar no fundo momentaneamente, mas
novo rolo de mar nos fez transpor a barra e entrar no rio, vindo a
Capelo simplesmente amarrada por um dos viradores.» O caso
esteve sério e até muito sério.
Quando o Neves Ferreira lavrou a areia do
fundo com a quilha, os três oficiais que se encontravam na ponte
trocaram rápidos e ansiosos olhares entre si. Pensavam, e baseados
em bom raciocínio, que a Capelo, em virtude da velocidade
adquirida, se precipitaria como um bloco formidável de encontro ao
vapor, e que as duas embarcações se despedaçariam ali como frágeis
chapas de vidro. Poupou-lhes esse aflitivo transe um verdadeiro
milagre. Sobreveio um vagalhão enorme, que, animado de bravia, mas
de salutar fereza, os arremessou para dentro do rio, sem mais
avarias que alguma louça partida e diversos trambolhões nos menos
peritos em se equilibrar.
/ 424 /
Principiou logo o trabalho para acabar o
armamento da Capelo que não ia completo. A actividade dos
oficiais era febril. O labor crescia a olhos vistos. Neste meio
tempo o Neves Ferreira, no dia 9 de Setembro, efectuou um
reconhecimento até aos bancos do Chai-Chai. À custa de muita cautela
e perícia subiu até ao Languene. Nunca ali surgira embarcação de
tamanha tonelagem. Fora uma proeza, que deixava boquiaberto o gentio
das margens, e que representava um triunfo moral, de incalculáveis
resultados para o pleito que as nossas forças de terra e mar ali
defendiam.
Em começos de Outubro iniciou a esquadrilha do
Limpopo as operações com toda a energia de que era susceptível o
ânimo denodado da sua oficialidade. A 26 de Setembro navegara a
Capelo até à lha Verde, onde se demorou algumas horas num tredo
encalhe. Durante a noite o gentio, que declarava em altos brados
pertencer ao Gungunhana, brandiu armas e azagaias, ameaçando
exterminar quem quer que ousasse saltar em terra. A canhoneira
explorou o rio durante cinco dias sem ser hostilizada. A 4 de
Outubro voltou a Capelo e o Neves Ferreira, então já
com instruções que permitiam aos seus comandantes procederem mais
desafogadamente. Sá e Andreia intimaram os régulos das terras
marginais a entregar os chefes rebeldes. As respostas destes foram
evasivas, mas mansas. Ambos lhes deixaram o ultimatum de que,
se a entrega exigida não se efectuasse dentro de oito dias, os
canhões de bordo arrasariam quanto se apresentasse ao seu alcance.
As guarnições das lanchas, sustentadas a carne e
peixe salgados, careciam dum alimento mais higiénico. Em terra
pascia excelente gado, mas os negros negavam a pés juntos que
possuíssem a mínima coisa para ceder aos brancos.
– Então vocês – dizia o tenente Sá por intermédio do
intérprete, na manhã de 9, a um induna – não se resolvem a
vender-nos refrescos?
– Não temos nada, molungo, pois tu não vês?
E ao longe mugiam os vitelos e balavam os cabritos.
– Não vejo, mas ouço, e como confio na tua palavra
honrada – redarguiu-lhe o oficial de marinha – vou dar-te uma prova
da minha confiança.
E fez um sinal aos homens armados que levara consigo.
Estes, acercaram-se dos animais que lhes pareceram melhores,
apanharam duas vitelas e conduziram-nas para bordo.
– Quanto custam? – perguntou Sá.
Só lhe responderam murmúrios, tão baixos e tão por
entre dentes, que não se conseguia distinguir se eram insultos se
queixumes.
– Ninguém responde? – continuou o comandante após uma
breve pausa – Avalio os dois vitelos em três libras, elas aqui
estão.
Como nenhum braço se estendeu para receber o
dinheiro, Diogo de Sá atirou com as três moedas para o chão e voltou
para bordo com todo o sossego. Apenas ele desapareceu logo os negros
se atiraram ávidos sobre as refulgentes efígies da rainha Vitória.
Não caíam em si do pasmo que lhe causavam esses inimigos, tão
generosos e tão diferentes dos amigos, emissários do Gungunhana, que
até pagavam as suas presas.
A 14 partiu a Capelo para tornar efectivo o
ultimatum. Alguns pseudo-embaixadores celebraram com Diogo de Sá
várias conferências, mas como não traziam nada de positivo, nada
alcançaram. Na manhã de 16, não tendo sido entregues nem o Mahazulo
nem o Zichacha, caíram as primeiras granadas do Neves Ferreira
nas povoações do Languene. O comandante, sempre cavalheiresco e
humanitário, não consentiu que o bombardeamento incidisse onde se
avistavam mulheres e crianças. À noite pairava sob uma vasta zona um
enorme e sinistro clarão. As labaredas vermelhas, hirtas, a prumo,
aniquilavam num incêndio lento e devorador as povoações, as
colheitas, os pastos, os haveres de alguns milhares de
/ 425 /
indígenas. De terra, o gentio dessa região fugira acobardado.
A Capelo encontrou mais sintomas de
resistência. Ancorou num ponto onde lhe era fácil bombardear dois
povoados consideráveis, e na tarde de 15 desembarcaram os seus dois
oficiais para explorar o terreno próximo. Houve ameaças da parte dos
negros. Na manhã imediata apareceu a praia coalhada de gente,
fazendo grande alarido. Álvaro Andreia intimou-os a retirarem-se.
Quedaram-se e motejaram da intimação; convenceu-os então a
metralhadora que só permitiu na riba aqueles que nunca mais se
levantariam. A esta primeira demonstração, sucedeu o desembarque de
Valente da Cruz, com apenas oito praças, que destruíram o covil dos
insubmissos vassalos do Gungunhana, e que, mais adiante, num destes
arrojos que farão sempre pasmar a posteridade, topando com uma
manga, de cerca de duzentos rebeldes, a obrigou a depor as armas e a
dispersar. Os poucos insurrectos que não obedeceram puniu-os uma
descarga mortífera. Era curioso ver entrar a bordo o exíguo grupo
dos portugueses carregado com os despojos de mais de cento e
cinquenta guerreiros.
O Neves Ferreira e a Capelo foram
durante largo período pavorosos símbolos de extermínio para as duas
margens do Limpopo. Da acção, simultaneamente enérgica e prudente
dos seus comandantes, resultou a pacificação dum amplíssimo
território e duma população avultada. Pouco a pouco os insurrectos
foram submetendo-se ao domínio de Portugal, convencidos pela
linguagem eloquente dos canhões-revólveres e pelo valor nunca
desmentido dos bravos marinheiros.
No dia 18 foi acometida a povoação da irmã do
Gungunhana. Valente da Cruz. à frente de trinta e seis homens, levou
tudo quanto encontrou diante de si. A rainha, a requestada e coxa
Bafú, deliberara não esperar pelos portugueses, nem ela nem a sua
corte, nem o seu povo. Só se encontraram quatro negros e dez
mulheres. A estes, fez Diogo de Sá uma prédica, por intermédio do
intérprete, acerca dos males que adviriam se a guerra continuasse, e
mandou-os em paz para apregoar aos conterrâneos o futuro que os
esperava. Este facto, e ainda mais uma lição severa inflingida por
Álvaro Andreia às povoações da Ilha Verde, e paralelamente a segunda
expedição, por terra, de Freire de Andrade ao Magul, tinham
asfixiado a rebeldia dos landins e dos vátuas no distrito de
Lourenço Marques.
O combate de Coolela e o incêndio do manjacase
converteram o quase omnipotente
/ 426 / régulo de Gaza num banido,
que fugia de terra em terra, com tanto medo dos portugueses, seus
inimigos, como dos vangonis e tongas seus vassalos. Preferia
entregar-se o Gungunhana aos primeiros, que, convencera-se, lhe
poupariam a vida, a continuar a ser defendido pelos segundos, de
quem temia a ambição e os instintos sanguinários. A vigiar o
Limpopo ficara só a Capelo, pois o Neves Ferreira
demorara-se no rio do Espírito Santo a concertar as avarias até 15
de Novembro. Aí Álvaro Andreia procedeu com os indígenas com a mais
elogiosa diplomacia. Na obra de pacificação, iniciada tão brilhante
e intrepidamente por Francisco Diogo de Sá, prosseguiu o comandante
da Capelo com o maior tino e zelo prático. Armou cerca de
três mil dos pretos que se bandearam connosco, e, entre eles e as
forças vátuas houve escaramuças de certa importância. Persuadiu os
regentes do Chai-Chai a mandarem gente sua apresentar-se ao coronel
Galhardo, e soube assim, e participou telegraficamente para Lisboa a
derrota do Gungunhana, primeiro que o comissário régio.
O trabalho de Álvaro Andreia foi enorme até ao fim da
campanha. Expõe o ilustre oficial de marinha, numa série de
interessantíssimos artigos, escritos nos Annaes do Club Militar
Naval, até que ponto, ele e os seus denodados camaradas e
corajosos subordinados, concorreram para a captura do Gungunhana.
Eis como termina uma parte desse primoroso e elucidativo estudo:
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
«Começava o Gungunhana a cumprir as intimações que
tinha recebido, pois o régulo do Chai-Chai afirmava que ele queria
também mandar o Mahazul o (régulo da Magaia) para tratar depois de
vir ele próprio pedir perdão e avassalamento.
Percebia-se o plano, os dois chefes rebeldes
primeiros causadores da guerra, enviava-os ele à frente para lhe
servirem de pára-raios, onde julgava se descarregaria toda a cólera
dos portugueses, fulminando-os logo que nos fossem entregues.
É então, forçado só pela triste situação em que o
tinham lançado as nossas vitórias, viria ele, humilde e contricto,
arrastar-se a nossos pés, a título ainda de cumpridor (tardio) das
ordens do comissariado régio, fazer os seus protestos de eterna
fidelidade a troco da sua vida, – que a do filho e a dos tios talvez
pouco lhe importassem, – e implorar que o deixassem cultivar em paz
as suas terras, desejo que já tinha manifestado e continuava a
manifestar.
Supunha ele que uma vez ao alcance de mãos
portuguesas, tornaria a ser livre e grande!
Era uma ilusão que cuidadosamente nos tínhamos sempre
esforçado por lha não desfazer nunca, pois a considerávamos
indispensável ao bom êxito final.
Passou-se o dia 14 de Dezembro e nenhuma confirmação
oficial recebemos acerca da entrega do Matibejana em Languene.
Amanheceu e decorreu parte do dia 16 e nada!
Extraordinário!
A chegada do Neves Ferreira pela tarde desse
dia, ia tirar-nos de apuros por uma forma que na realidade se
tornava bem urgente.
Trazia ele o carvão porque tanto suspirávamos para
podermos trabalhar à vontade, mas com a sua chegada ia mudar
completamente a situação no Limpopo.
Tinha sido criado um governo militar nas terras de
Gaza, as quais ficavam em estado de sítio.
A nossa iniciativa tinha de parar; a outrem pertencia
levar a cabo o que se havia planeado, como e quando melhor fosse
entendido.
A nossa missão cifrava-se no seguinte trecho das
instruções, que então nos entregava, por ordem superior, o
segundo-tenente Magalhães Ramalho, novo comandante do Neves
Ferreira.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
A bordo do vapor Neves Ferreira vai Sua Ex.ª o
governador militar das terras de Gaza,
/ 427 / capitão Mousinho de
Albuquerque, a quem V. Ex.ª prestará todos os auxílios. . . . . . .
. . . . . .»
De então em diante cumprimos as ordens recebidas, e
respeitando sempre a ordenança geral da armada, procedemos com a
mesma boa vontade, que sempre temos empregado nas diferentes
comissões de serviço que temos desempenhado.»
*
* *
Não desejaríamos concluir este sucinto esboço, sem
nos referir, em breves palavras, ao tenente Pinto Roby, outro
distinto oficial de marinha que sacrificou a vida em prol da honra
militar e do pundonor da corporação da armada.
Depois de comandar varias canhoneiras na Zambézia, de
bem cumprir o seu dever de marinheiro no Oceano e de soldado em
terra, em várias escaramuças, fez parte da companhia de desembarque,
comandada pelo primeiro-tenente Alberto Costa, junto com o tenente
Alves Dias e guarda-marinhas Fernando de Magalhães e Barbosa
Casqueiro no combate de Macontene, epílogo definitivo das operações
do Gungunhana, onde foram destroçadas as forças rebeldes do
Maguiguana. A intrepidez com que se portou na sangrenta conjuntura
valeram-lhe os mais levantados elogios de Mousinho de Albuquerque e
das instâncias oficiais.
Terminada a sua estação em África, Pinto Roby e o
médico naval Manuel da Silveira, de regresso à metrópole, aportaram
a Moçâmedes. Preparava-se aí a expedição contra os cuamatas. Ambos
se alistaram nela. O primeiro levado pelo seu espírito irrequieto de
brigão cavalheiresco, o segundo, ao que se afirma, para esquecer no
mais santo dos apostolados da ciência íntimos sofrimentos que lhe
magoavam a existência.
É demasiado cedo para fazer com absoluta
imparcialidade a história desse desastre, que, cobrindo de crepes as
armas portuguesas, enlutou imensas famílias. Narraremos apenas a
morte do desventurado tenente, segundo uma carta que nos parece
conter a narrativa exacta da horrenda tragédia.
A força portuguesa formara quadrado e descansou.
Aproveitando este repouso seguiu um pequeno troço de cavalaria a
explorar o terreno. Levava à sua frente o capitão Morais e o tenente
Pinto Roby, montados em mulas, que se distanciaram do piquete
explorador. Entram numa clareira onde existiam duas embalas. Surgem
cinco pretos armados de azagaias. Lembram-se os dois oficiais de os
aprisionar e atiram-lhes com as muares para cima. Quatro dos negros
fogem. O quinto resiste. O capitão Morais toma-lhe o passo e
brada-lhe, na sua língua :
– Não fujas!
O indígena estaca, Morais vai para lhe deitar a mão,
mas o velhaco, num movimento célere, vibra-lhe uma azagaiada ao
peito. O capitão, furioso pela dor, despede-lhe uma cutilada e
corta-lhe a orelha direita. Acode Pinto Roby, o cuamato repete a
agressão e fere o marinheiro, ao de leve, na mão. Ouve-se um tiro e
o rebelde tomba morto. Fora um soldado de cavalaria que o prostrara.
O combate singular e o tiro tinham chamado a atenção do quadrado.
Este aproxima-se. Começa então, furiosa, a luta. A primitiva
formatura em bloco é abandonada e estendem-se algumas linhas de
atiradores. A cavalaria pronuncia uma carga, que se malogra pelo
abrigo que os contrários encontram nas cubatas. Eram sete e meia da
manhã.
Das povoações chovem sobre os europeus aguaceiros
consecutivos de balas. Eram cerca de dez mil negros contra um
punhado de brancos. As munições principiam a escassear. Na face da
frente, na que suporta mais mortiferamente o embate do inimigo,
rareia o fogo. Então, nunca se averiguou muito bem, se por
imprudente arranco de bravura, se por necessidade de desafogar esse
lado, se para poupar a pólvora, os pelotões do batalhão disciplinar,
de baioneta armada, seguidos por alguns soldados indígenas,
arrojam-se, precedidos pelo tenente Ferreira, num ímpeto heróico
sobre os adversários, cem vezes mais numerosos que eles. Os pretos
cedem e são levados de roldão até mais de cem metros. Para cúmulo de
infelicidade, durante a carreira, os poucos cartuchos que restam aos
brancos saltam fora das bolsas abertas.
Após algumas horas de pugna renhida estavam por terra
a maioria dos oficiais, dos graduados e ainda uma boa parte do
efectivo do batalhão. O cartuchame esgotara-se de todo. O momento
era dos mais aflitivos que podem alancear homens dispostos a morrer.
O que restava desse punhado de valentes agrupa-se em redor do único
cabo sobrevivente, até que este cai também. Então,
/ 428 /
desordenado o pequeno bando, retira sobre o grosso do quadrado, já
então com fraca consistência e com sinistros e significativos
intervalos nas suas fileiras, e brada:
– Mais pólvora! Forneçam-nos munições ou morremos
todos!
Os rebeldes, embriagados com a vitória, com a
perspectiva feroz do morticínio, tornavam-se de momento para momento
mais audazes.
A companhia europeia cedera a muitas instâncias dois
chapéus de cartuchos aos restos do batalhão disciplinar. Durante
segundos houve um certo recrudescimento no fogo, mas o inimigo não
afrouxava, pelo contrário, cada vez estreitava mais, nas suas
possantes alas de muitos milhares de homens, o minguado quadrado,
que não tardaria a ser asfixiado.
O capitão Morais sugeriu ao seu colega Pinto de
Almeida a necessidade de retirar. A companhia europeia cobriria o
movimento de retrocesso, que se efectuaria por lanços, em ordem,
regularmente. Ressoou um toque de corneta, mal distinto no meio da
confusão e do alarido do prélio. Ao mesmo tempo, em lugar das vozes
de comando, precisas, nítidas, enérgicas, dadas nesse tom que a
disciplina obriga logo a obedecer, ouviu-se a frase desmoralizadora:
– Vamo-nos embora!
Foi dum efeito fulminante, escreve uma testemunha
ocular do triste acontecimento, este «Vamo-nos embora!» As faces
laterais do quadrado oscilaram um momento e desconjuntaram-se como
dois velhos muros que desabam. Os soldados indígenas perderam a
forma e refluíram sobre a companhia europeia, fugiram depois em
todas as direcções por onde lhes parecia poderem escapar à chacina;
o gentio viu a desordem de relance e caiu em massa sobre o quadrado.
Envolveram-se os soldados com o gentio, numa luta corpo a corpo,
infalivelmente desastrosa para nós.
«O campo era um misto confuso de negros, saltando
como leopardos, brandindo a azagaia terrível, a machada fulminadora
e até o modesto porrinho; de soldados pretos, desorientados, mal se
defendendo da morte, procurando escapar à arma aguda do cuamato ; e
de praças brancas furiosas de raiva, sem esperança de salvação, mas
querendo morrer devagar, entre os destroços sangrentos dos inimigos,
preferindo a morte ali em terra ingrata, onde os corpos serviriam de
pasto aos abutres, à morte lenta, entre agonias monstruosas nas
aldeias do gentio vencedor. Só a companhia europeia conseguiu
manter-se serena e resoluta. O tenente Rodrigues que estava à frente
dela, clamava:
– Quem não tem comando, venha para aqui!
Iniciou-se a retirada. Para que não fosse muito
precipitada e confusa, Pinto Roby tomara, numa galopada, um ponto
distante do caminho por onde haviam de passar. Se a soldadesca
debandasse, ele a procuraria conter. Mas tal não se deu apesar de
irem caindo ora um, ora outro, nesse trajecto angustioso.
Encontraram por fim o tenente Pinto Roby. Estava sentado num tronco
de árvore, com a montada ao lado. Chorava. O capitão Morais supô-lo
ferido e perguntou-lhe:
– Que tem?
– Isto é a maior das vergonhas, camarada!
– Deixemo-nos disso agora – respondeu o capitão –
ajude-me a conduzir esta gente.
Ele então, num ímpeto, saltou para a sela, e, sem
dizer palavra, voltou-se de frente para onde o gentio mais avultava,
esporeou o animal, e, de espada em punho atirou-se para a massa dos
negros, à cutilada, como um furacão terrível. Seguiu-o
/ 429 / um
cabo de dragões, neste heróico e perdido rasgo de valentia.
Foi este cabo, que conseguiu escapar, quem trouxe a
notícia da sua morte e o revólver do intrépido oficial de marinha,
que entregou ao capitão Morais.
O médico Manuel da Silveira morreu mais tarde, depois
de curar muitos ferimentos. Ambos tiveram o fim glorioso dos
mártires, que sucumbem por esse supremo ideal chamado pátria, e que
a armada tão alto e com tanto fulgor tem sabido e querido enaltecer
em todas as épocas e em todas as circunstâncias.
EDUARDO DE NORONHA
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(1) – Infelizmente, o capítulo II deste artigo não figura
entre os «restos» dos incompletos exemplares que chegaram até nós.
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