E enquanto isso, com
a direita, sacou do bolso campeiro do avental um bom punhado de
cinza que enfiou ao desgraçado
pela boca, pelo nariz, por onde pôde. O triste, engasgado, a
espirrar, a tossir, foi-se dali acagaçado, jurando vingança.
Depois eram os
máscaros. Aos pares, isoladamente ou em pequenos grupos, muito bem
disfarçados, de caras e até de mãos escondidas para não serem
identificados.
O Samuel Alho, às
tantas, passava com a sua funçanata. Mais de vinte máscaros. Ao som
de infernal orquestra, iam evoluindo de acordo com o ensaiado e as
ordens do mestre, dadas através de fortes assobiadelas.
Quem também nunca
faltava era o Moira trazendo em cada ano uma novidade, com aquela
sua graça natural que todos conheciam e apreciavam. Em grande penico
de barro, comprado especialmente para o efeito, deitou uns bons
cinco quartilhos de vinho branco onde pôs a boiar grandes pedaços de
chouriça. Calmamente, sem pronunciar uma palavra, rua abaixo, rua
acima, ia oferecendo do petisco. Caras horrorizadas, gestos a
despedir o atrevido. Ele, então, tranquilamente, limpava o bigode às
costas da mão e bebia do penico, piscando maliciosamente os seus
olhos miudinhos.
…
O Toino Manco não
gostara nada do tratamento recebido da Gracinda. Uma destas nunca
lhe acontecera. Vá que ele tinha um defeito na perna esquerda; mal
de nascença a que ao tempo ninguém ligara; mas tinha força de homem
e nunca fugira a brigar nem confessava medos. Porém, o raio da
rapariga filara-o pelo pescoço com tais ganas que ele não teve tempo
para mais nada. Depois, com a boca, o nariz e os olhos cheios de
cinza, que mais podia fazer?
Saiu dali
amarfanhado, mas garantindo que ela lhas havia de pagar.
Já noite entrada,
passou por casa, foi à loja e pegou o panelão de barro preto de
Molelos, já esbeicelado e rachado no fundo, onde deitara umas vinte
dúzias de bugalhos que pacientemente havia juntado.
Panelão debaixo do
braço, na calada, saiu pelo quintal do Chambelador, direito ao rio.
O caminho era mais longo por ali; mas mais seguro. Pelo largo do
Sanomédio havia ainda muita gente capaz de lhe descobrir as
intenções e de deitar a perder todo o seu plano.
Com ligeireza
atravessou as poldras saltando de pedra em pedra. O luar não era
muito; mas dava para ver reflectido na água o seu sorriso de
triunfador. Subiu a ladeira até à casa da Augustinha. Aí, coseu-se à
parede e, pé ante pé, seguiu em frente.
No largo da
Ferradora virou à esquerda. Trinta, quarenta passos adiante, lá
estava a casa da Gracinda. Passou em frente para entrar pelas
traseiras do cortelho, saltando o muro. Apurou o ouvido. Lá dentro
conversava-se animadamente. Não dava para entender, mas não seria
difícil adivinhar que falavam dos acontecimentos do dia, enquanto
preparavam o caldo e as batatas da ceia. |