E quanto mudou neste meu percurso de
vida na minha freguesia! Quando começo a ensaiar um olhar
retrospectivo, à tona da maré das recordações, logo me surge a forma
como soube qual era o verdadeiro nome da minha freguesia. Foi
preciso chegar aos meus 20 anos para ficar a conhecer que a
Freguesia da Glória se chamava Freguesia da Nossa Senhora da Glória.
Foi o mestre de Direito Constitucional, Professor Carlos Moreira que
Deus tem, logo no início do meu primeiro exame oral de
estudante-trabalhador na Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra, que me deixou embaraçado ao dizer que eu não tinha
preenchido correctamente o cabeçalho da prova escrita: que Glória
não era o nome todo da minha freguesia. O nome todo era o de Nossa
Senhora da Glória e tinha sido assim criado para calar os fregueses
católicos que não tinham ficado nada satisfeitos com a reforma
administrativa que tinha eliminado as freguesias aveirenses de S.
Miguel e do Espírito Santo. O que é facto é que as respectivas
igrejas foram destruídas para dar lugar a duas praças: o largo onde
está a estátua do tribuno José Estêvão e o largo das Cinco Bicas.
Ficou no uso o nome de Glória, que era o que o legislador
verdadeiramente queria: Glória, do nome da rainha Dona (Maria da)
Glória que terá sido complacente com a destruição daqueles templos.
O meu exame de Direito Constitucional ficou-se quase e tão só por
esta pequena- grande lição de História.
Das vivências que perduram na minha
memória, fica-me o ter murado na rua de Gustavo Ferreira Pinto
Basto, na casa da minha avó Joaninha. O meu pai Manuel, marinheiro,
mobilizado para a Armada quando da segunda Grande Guerra, tinha ido
com a minha mãe para Lisboa. Eu fiquei cá. E foi naquela rua que eu
construí a mais sólida amizade da minha vida: ao lado da casa da
minha avó morava o casal ALA DOS REIS que tinha só um filho: o
André. Eram descendentes do Dr. André dos Reis, presidente da
primeira Comissão Administrativa da Câmara Municipal de Aveiro, após
a implantação da República.
Eu tinha 4 anos e perder-me e
achar-me era em casa do Andrezinho, assim o chamava. Éramos mais
unidos que irmãos. Ele era mais velho uns dois anos. Sabia muito.
Tinha livros. Desenhava muito bem. Conviver com ele era estar numa
aula permanente. Com ele aprendi a ser aquilo que sou. Tenho pena
que Aveiro já não o conheça. Foi o melhor aluno dos liceus de
Portugal quando fez o seu 7º ano; tirou média geral de 19, o que,
para a época, foi verdadeiramente excepcional. Foi para Coimbra
frequentar Germânicas. O professor Paulo Quintela convidou-o para
seu assistente. Mas adoeceu gravemente quando estava a preparar, na
Alemanha, a sua tese sobre Thomas Mann. Veio a morrer aos trinta e
três anos. Deixou poesia, alguma da qual veio a ser editada pela
Associação dos Antigos Alunos da Escola Primária da Glória,
associação altamente meritória que ajudei a formar. Julgava que ele
não tinha ultimado a sua tese. Mas enganei-me. Há meses, alguém me
ofereceu um seu exemplar. Ando a lê-la como quem reza. Felizmente
que o que restou da sua biblioteca foi doado à Universidade de
Aveiro. Vale, em abono da sua memória, o registo que o Dr. Henrique
de Oliveira garantiu no “sítio” virtual de AVEIRO E CULTURA que
criou e desveladamente vai diariamente nutrindo para nossa riqueza
espiritual.
Dessa Rua de Gustavo Ferreira Pinto
Basto guardo memórias que definem vida.
Ir “tomar conta” da minha tia
Conceição quando ela ia aos bailes do Recreio Artístico mesmo em
frente à nossa casa. Ainda me parece estar a ouvir as músicas
tocadas pelos conjuntos “Aloma” e “Ibéria” e que eram deleite para a
minha sensibilidade de menino.
E aos domingos, criança, pôr-me à
porta do Teatro Aveirense, nas matinés das sessões de cinema, para
arranjar a boleia de alguém tolerante que me levasse pela mão até lá
dentro. O que importava era ultrapassar a barreira do porteiro.
E as minhas escapadelas até casa da
minha tia Lizette, pela travessa do Recreio Artístico e descendo a
ladeira do Alboi no triciclo que o meu pai me tinha trazido de Nova
Iorque, lindo que despertava inveja, apesar de ter sido resgatado do
lixo.
Lembro a noite horrorosa do incêndio
do Governo Civil. Por detrás da casa do Sr. Egas Salgueiro via-se o
clarão avermelhado provocado pelas chamas que estavam a devorar o
edifício e cujas cinzas tudo cobriam. Passei boa parte da noite, à
porta de casa, sentado num mocho, agarrado à saia da minha avó
Joaninha, cheio de medo, a ver o horroroso espectáculo.
E durante a guerra, a segunda
mundial, os cuidados com que se ouvia a BBC numa telefonia de
válvulas que o meu tio Coríntio tinha construído. Julgo que para não
sermos descobertos, sempre que se sintonizava aquela emissora de
liberdade, púnhamo-nos debaixo de um cobertor de lã. Os vidros das
janelas tinham coladas uma tiras de papel gomado para prevenir as
consequências de possíveis deflagrações.
Uma das coisas que mais me
impressionou foi ver desfilar garbosamente, pela rua de Gustavo
Ferreira Pinto Basto, o Corpo Expedicionário de Infantaria 10 que
regressava dos Açores, quando a Guerra terminou. Lá vinha o meu tio
Alpoim, irmão de minha mãe e meu padrinho de baptismo. Quando o
vimos, todos chorámos de alegria.
Quando tinha 5 anos, o André foi
para a Escola Primária da Glória, para a primeira classe da Dona
Virgínia. Não descansei enquanto a minha avó não foi pedir a esta
professora para me deixar assistir às suas lições, de forma a não
perder o convívio com o meu amigo.
Entretanto, a minha avó mudou de
casa. E eu lá fui com ela até ao nº 53 da Rua de Ílhavo, hoje Rua de
Mário Sacramento, mesmo em frente ao Posto da Polícia de Viação e
Trânsito, cujos agentes, dizia o meu Pai, tinham uma farda “à
americana”.
Nunca deixei de frequentar a casa do
meu amigo André. Continuei a ir lá lanchar, muitas vezes almoçar.
Nunca perdi o convívio com os seus pais que eram muito meus amigos.
E a amizade com o André, que era muito forte, foi-se robustecendo
com os anos
Mas a mudança de morada abriu-me
novos horizontes. Viver na Fonte dos Amores era viver quase no
campo.
Foi aí, no sítio onde a fonte já lá
não está, que eu passei parte da minha meninice e da minha
adolescência; exactamente na Fonte dos Amores, no lado esquerdo do
princípio daquela Rua de Ílhavo. Uma pequena fonte que, hoje, se
esconde no final da Avenida de Araújo e Silva, quase que
envergonhada do seu passado, no começo de um caminho mal amanhado
que dá acesso a uns campos de ténis do nosso parque
municipal. O resquício da que presidia ao largo verdejante onde ela,
a fonte, foi rainha, não só do espaço a que dava o nome, mas de
todos nós, os seus frequentadores.
Desses tempos, já lá vão seis
décadas e meia bem medidas, resta parte das casinhas, quase todas
térreas, na que foi a viela da Fonte dos Amores. A placa toponímica
ainda lá está, na casa da esquina com a travessa do mesmo nome. Eu
morei no primeiro andar dum prédio que foi destruído, não há muitos
anos, certamente por interesses imobiliários. No vazio do que foi um
pequeno quarteirão de casas de habitação e de dois pequenos
estabelecimentos – uma oficina de reparação de bicicletas, a do
senhor Adriano, que ficava mesmo por debaixo da casa da minha avó
Joaninha, a senhora Joaninha do Gaspar, como lhe chamava tão
carinhosamente a vizinhança; e outro, uma mercearia/taberna,
separada esta daquela só por precaríssima vedação de madeira para
satisfazer exigência legal então em vigor, e onde todo o bairro se
abastecia. O prédio que albergava este último estabelecimento
manteve-se durante mais uns anos. No vértice do triângulo que era
definido pelo princípio da Rua de Ílhavo e pelo fim da Avenida
Araújo e Silva, ficava o bonito posto da Polícia de Viação e
Trânsito, com o seu amarelo-torrado a presidir a um jardim que os
seus agentes, sempre garbosamente fardados, sabiam manter com um
carinho inexcedível.
Nos meus seis anitos de vida, que
os tinha quando para ali fui morar, ido da casa da Rua Gustavo
Ferreira Pinto Basto, ainda não havia a enorme balança, construída
mais tarde e onde eram pesadas as camionetas que os agentes
desconfiavam exceder a carga autorizada por lei. Nunca esqueci as
caras transidas de medo dos condutores dos veículos, quando eram
mandados avançar para cima do grande estrado de ferro da balança. Os
miúdos do bairro, eu também, eram preciosos auxiliares dos polícias
nas manobras de medição das alturas das cargas, que também tinham
limites impostos por lei. Quando foi construída a báscula instalada
no vazio de enorme buraco, foi aberta uma curta estrada a ligar a
Rua de Ílhavo à Avenida Araújo e Silva, deixando bem visível o
grande portão de ferro do quintal do senhor Zé Pinto da Farmácia. A
Rua de Ílhavo já tinha um piso consistente; mas ao da Avenida
bastava uma pequena chuvada para o converter num mar de lama. A
avenida tinha sido aberta não há muito tempo, pois que dos passeios,
que ainda hoje lá estão, só existia o esboço com uns paus especados
ao alto, aos quais se arrimavam os raquíticos arbustos que os anos
transformaram em árvores. Quem ia do Jardim do Infante D. Pedro, do
lado direito, era quase tudo limitado pelo alto muro da quinta do
Genrinho. Do lado oposto, eram vários os muros e de diferentes
alturas, correspondendo cada naco ao seu quintal.
Quando íamos da Escola Primária da
Glória, (não esta que lá está agora, mas as outras, a masculina com
o edifício da Primeira República e a outra, a das meninas, mais
envergonhada na sua construção, quase pespegada à Igreja das
Carmelitas), sempre em bando, antes mesmo de irmos cada um para sua
casa, tínhamos paragem obrigatória na relva do largo da Fonte dos
Amores. Descalços, pois que os sapatos, alpergatas ou botas já
vinham ao ombro pelas atacas, lá brincávamos o tempo justo para que
ninguém estranhasse demoras, que só viriam a comprometer o outro
recreio, esse, mais longo, depois de feitas as obrigações de casa.
Aquele espaço, em parte hoje ocupado pelas traseiras do edifício
onde actualmente se situa o restaurante “Ceboleiro”, era
verdadeiramente um espaço mágico, o autêntico centro das nossas
vidas de crianças. Da Rua de Ílhavo acedíamos à relva de corar a
roupa por uns degraus que interceptavam o muro, que definia o lado
poente do rectângulo. Pelo sul, havia o riacho que vinha, pelos
quintais fora, dos lados do cemitério e seguia, por debaixo da Rua
de Ílhavo, até à quinta do Genrinho, sendo-nos garantido, de ciência
certa, pelos adultos do bairro, que ele ia, por ínvios caminhos,
desaguar ao lago do Parque. Do lado nascente, lá estava a nossa
Fonte dos Amores, encostada ao muro encimado de ameias e com as
armas do Duque de Aveiro nele embutidas, separando-a do quintal onde
se situava a casa dos pais do meu bom amigo José Júlio, hoje um dos
gerentes da Casa Espanhola, da Rua Direita, o senhor João Gualter
Dias, o sapateiro do sítio, casado com a senhora Maria Lourenço, uma
das três lavadeiras profissionais dos tanques anexos. Foram estes os
pais de prole numerosa: do Amílcar, do Jonas, da Violeta, da
Verídica, do António e, claro, do José Júlio. Perfazendo o outro
lado do recinto, para sul, ficava a casa da senhora Constância, mãe
da senhora Armanda Caçola e da senhora Carolina, esta casada que foi
com o senhor Pinheiro, barbeiro do Seminário e de quase toda a gente
do bairro.
A dona Carolina, mãe do meu amigo
Fernando Pinheiro, também era lavadeira profissional nos tanques da
Fonte dos Amores, autêntica lavandaria de então desta cidade de
Aveiro. Completando o trio das profissionais, havia ainda a senhora
Maria dos Lençóis, sogra do ti Damásio e mãe da Maria Helena e da
Marília. Tudo isto sem esquecer o ti Norberto da Concertina, pai do
músico José Vieira Rodrigues, meu velho colega da escola primária,
que toda a gente conhecia e continua, felizmente, a conhecer por
Fagote da Banda Amizade. E o senhor Neiva, pai da Odete, do Carlos e
da Joaninha, já falecidos, e da Mininha e da Marília que se veio,
posteriormente, a casar com o grande artista aveirense, o barrista e
pintor cerâmico Zé Augusto. Vizinha da minha avó Joaninha, vivia,
paredes-meias, a senhora Blandina, casada com o primeiro-sargento
Agenor. Do lado de lá da Travessa da Fonte dos Amores, ficava a casa
da senhora Miquinhas do Bagão, este também sargento no Regimento de
Infantaria 10, ambos pais dos meus amigos Amílcar e Carlos Bagão. E,
mesmo ao lado, morava a senhora Amandina, casada com o senhor
Tobias, que andava ao mar, no bacalhau, à semelhança do meu pai
Manuel.
A relva onde se corava a roupa de
meio Aveiro era também o nosso recreio. Era lá que se jogava “à
bandeira”, à “macaca”, à “mona” e ao “pião”, à “malha”, ao
“berlinde”, à “uma-lá-uma”, às escondidas, aos “índios e cowboys”,
atirando flechas de varetas de guarda-chuva, onde se corria ao
“arco” com rodas de bicicleta, sem aros, que se compravam no senhor
Raul das Cinco Bicas e com carros feitos de caixotes de madeira. Era
lá que se trocavam os “bichos” e os “jogadores” da colecção. Era lá
que se combinavam as “penhoras” das frutas mais apetitosas dos
quintais alheios.
Era lá que, de vez em quando, se
rachava uma cabeça. Era lá que surgiam os motivos fortes para
largarmos à desfilada até às nossas casas, lavados em lágrimas que
de pronto ficavam secas por conta de adequada reprimenda. Era para
lá que fugíamos quando éramos apanhados a fazer alguma das nossas
pelo fiscal da Câmara, o senhor Evaristo. E continuava a ser o nosso
refúgio sempre que o senhor Adriano, guarda do Parque, nos
surpreendia a cortar uma cana-da-índia para fazer uma “pesca” para o
Poço de Santiago. Este percurso, que em si mesmo já era uma
aventura, facultava-nos, nas alturas próprias do ano, a apanha das
folhas de amoreira para os bichos-da-seda, que criávamos em caixas
de cartão que íamos pedir às sapatarias.
Era lá que nos juntávamos, quando
íamos buscar um jarro de água, ou quando íamos buscar leite à
vacaria do doutor Pompeu Cardoso, na Rua das Pombas, e que o senhor
Carlos, responsável pelos animais, (e que tinha tanto de bom como de
alto e forte), nos dava a provar, fazendo com que o leite saísse de
jacto, quente, direitinho do úbere da vaca para a nossa boca, aberta
a preceito. A casa do dentista Dr. Pompeu Cardoso era o edifício que
hoje alberga a Junta de Freguesia da Glória. Era por lá que eu
parava um pouco a caminho da casa do senhor Vieira, grande lavrador
que vivia já quase fora de portas, no meio dos campos de Santiago,
numa linda vivenda, onde vim a descobrir um violão saído das mãos de
artista do meu avô materno, António Gaspar, melómano amigo do
saudoso fundador das Faianças dos Santos Mártires e da Fonte Nova, o
senhor João Aleluia que, para além de brilhante empreendedor
industrial, foi talentoso pintor cerâmico.
A fonte dos meus amores não é mesmo
só a FONTE DOS AMORES que acabo de recordar. É Aveiro toda, esta
minha terra feita de água, este meu espaço que vai pelo Atlântico
fora e que não me cria barreiras aos ventos que ora sabem à maresia
dos cagaréus, ora cheiram a fragrâncias de campos dos ceboleiros
estirados até às serranias já lá por lonjuras de levante. É Aveiro
toda, na saudade que corrói quando evoco tempos da minha meninice e
da minha juventude, na saudade que amarfanha, quando me afasto mais
do que vê-la me consente. É a Aveiro, que D. João Evangelista de
Lima Vidal agarrou na sua prosa tão cheia de poesia e converteu em
orações que me habituei a murmurar, em fim de dia, principalmente
quando dela me ausento; é a Aveiro que Almada Negreiros tão bem
soube pintar com a sua palavra de pincelada fluida e a quem me
arrimo sempre que sinto desejos de relembrar as marinhas de sal que
já quase não temos, ou as tricanas donairosas, cujo traje se
transformou em peça de museu; é a Aveiro de Ramalho Ortigão sem ter
que importar dunas da Holanda; é a Aveiro de Rocha e Cunha, que
encontrou tempo na sua faina de capitão de porto para justificar a
viabilidade económica da nossa barra; é a Aveiro de Raul Brandão,
onde redescubro os pescadores da minha família; é a Aveiro de
Monsenhor João Gaspar a fazer de Joana cada vez mais princesa, cada
vez mais santa; é a Aveiro de Alberto Souto com o seu bairrismo de
fronteira aberta e larga; é a Aveiro de Pedro Zargo, de João
Sarabando, de Mário Sacramento, de José Pereira Tavares, de Álvaro
Sampaio, de Ferreira Neves, de Cecília Sacramento, de Rocha e Cunha
(filho), de André Ala dos Reis, de Vale Guimarães, de Frederico de
Moura, de David Cristo, de Vasco Branco; é a Aveiro de Manuel
Tavares, de Guerra de Abreu, de Cândido Teles, de Lauro Corado; é a
Aveiro de todos com quem me cruzo nas nossas ruas e a quem digo bom
dia. Enfim: a fonte dos meus amores é esta Aveiro que me deu o ser e
me foi moldando até aos dias de hoje.
E nunca nos esqueçamos de que a
nossa Freguesia da Glória é mesmo a Vila Velha de Aveiro, em cujo
chão quero ser envolvido quando Deus me quiser levar.
Gaspar Albino
Aveiro, 7 de Outubro de 2010