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Pintura de Gaspar Albino - Ílhavo, 2001, págs. 21-24.

   

 

GASPAR ALBINO

 

Moramos na mesma rua e em frente um do outro. Encontramo-nos frequentemente e o modo habitual de nos cumprimentarmos é assim: "Olá, Joaquim!"; "Olá, António!". Quando o tempo no-lo permite, ficamos a rememorar velhas coisas.

Conhecemo-nos desde há muitos anos. Desde os tempos, já distantes, em que, lado a lado, trabalhávamos para a Indústria Aveirense de Pesca, com sede no Rossio e secadouro na Gafanha da Nazaré, então a operar com um só navio, o João Ferreiro, depois do naufrágio do Mileno. Para nós, a saga do bacalhau, desde a armação do navio à sua descarga, desde a pesca do fiel amigo à sua armazenagem, salga, lavagem, secagem, enfardamento e entrega nas instalações da Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau – poucos segredos tinha. Nenhum de nós tivera ainda a oportunidade de embarcar até aos "mares do fim do mundo", onde a pesca se fazia. Mas a vida a bordo tinha os seus repórteres espontâneos, desde o capitão ao moço. E sobre a vida dos trabalhadores da seca nós não precisávamos de cronistas, porque a podíamos observar sur place, onde ela se desenrolava, sempre que havia bacalhau para secar, ali diante dos nossos olhos, na Gafanha. Eu vivia, por essa altura, no Paço e ele na Beira-Mar, mesmo junto à capela de S. Gonçalinho. Algumas vezes ia a casa dele. Encontrava na casa dele o mesmo cheiro da ria que entrava pela minha casa dentro. Dissolvidos na maresia chegavam aos nossos sentidos também os rumores do bairro - vozes desgarradas de crianças, de mulheres e de homens, cujos timbres e melodias, às vezes salpicados de grasnidos de gaivotas, tinham um encanto indescritível. A somar a este fundo em que decorriam as nossas conversas, vinha regularmente o toque do sino da capelinha. Podíamos não estar a entender-nos. Mas, pelo menos para mim, este cenário me bastava. Era o tempo ou o espírito do lugar – não distingo bem entre uma e outra coisa – que me parecia uma espécie de água translúcida e sem peso que, todavia, nos cercava por todos os lados e tinha a força bastante para nos suster e alimentar.

Além de partilharmos a circunstância de trabalharmos para a mesma empresa, partilhávamos uma espécie de destino comum. Assim, o António, que se revelara um aluno distinto na Escola Comercial, e eu. que podia continuar a frequentar gratuitamente o Colégio de D. Pedro V, ambos nós, por solidariedade com as nossas famílias, decidíramos interromper os nossos estudos para, com a remuneração dos nossos primeiros empregos, tornar mais desafogada a vida dos nossos pais e dos nossos irmãos. Um outro traço comum nos ligava – o do interesse apaixonado pelas coisas da cultura e da arte: ele, especialmente pelas artes plásticas e eu, especialmente pela literatura. Ambos, na medida do possível, demos a entender essas inclinações, na colaboração dada às iniciativas que tomavam corpo na nossa cidade, puxados por um Vasco / 22 / Branco, um Mário Sacramento, um João Sarabando, um David Christo, um Luís Regala... A vida empurrar-nos-ia, entretanto, para espaços diferentes. Eu tive de trocar o meu emprego no escritório por um lugar a bordo do arrastão da empresa, fui emigrante em França, voltei a embarcar para os Bancos da Terra Nova, Labrador e Gronelândia, o único modo de evitar a participação na Guerra do Ultramar, e depois disso, tive de percorrer diversas empresas, até obter a licenciatura em Filologia Românica, frequentando a universidade como estudante-trabalhador. O António, dispensado do serviço militar, continuou na mesma empresa, ao mesmo tempo que ia frequentando o curso de Direito. As tarefas de gerente da empresa, a que entretanto subira, não lhe permitiram concluir o seu curso. E quando a abandonou, já não o pôde concluir, pois as provas de gestor de sucesso que entretanto dera, naturalmente o levaram para outros empreendimentos de natureza industrial e comercial. Do que ele não conseguiu de modo nenhum apartar-se foi dos lápis, dos pincéis, das telas, da escrita e da palavra, através das quais sempre se afirmou como um homem de cultura, de arte e de intervenção política – em irrecusável obediência a uma vocação muito cedo revelada. As várias exposições individuais e colectivas em que tem dado a conhecer os seus quadros tornaram-no uma referência viva no mundo da criação artística da nossa região.

Agora que residimos, um frente ao outro, na Rua Sebastião de Magalhães Lima e um certo destino de vivermos na proximidade um do outro nos acompanha, é bom retomarmos, de vez em quando, o diálogo em que procurávamos dar sentido ao tempo dos nossos sonhos e dos nossos anseios juvenis. "Olá, Joaquim!"; "Olá, António! Então como vai isso?" "Tenho ali em casa umas coisas para tu veres". "O que é?" "Entra e já vês". "Mais algum quadro", digo eu. Mostra-mo e põe-se de lado, fumando compenetradamente o seu cigarro. Não sou a pessoa ideal para lhe dar uma boa opinião. Mas gosto sempre dos seus trabalhos e ressalvando sempre a minha falta de competência para falar deles devidamente, lá vou dizendo o que melhor me parece. Há dias, disse-me de chofre: "Vou fazer uma exposição e gostaria de te associar a esse acto". "Como assim?" "Pondo por escrito aquilo que me tens dito." – Não fui capaz de me escusar. Daí que esteja agora a fazer as presentes garatujas.

O que é que mais me atrai nesta exposição de Gaspar Albino? Em primeiro lugar, o mundo a que deu forma neste conjunto de obras. Em segundo lugar, o simbolismo tão vincadamente presente em todas elas. Por último, a resolução que, no meu humilde entender, ele dá, em termos artísticos, aos dois primeiros pontos mencionados e me parecem, na verdade, essenciais. A quem, como eu, passou o maior tempo da sua vida misturando o quotidiano com o das gentes da nossa ria e do mar longínquos onde se pesca o bacalhau, o mundo destes trabalhos não é só dele. É, também aqui, partilhado por mim. Gente que se deixa envolver por horizontes de azul e brancura, que sonha antes de embarcar e que enfrenta, nos mares longínquos, a impossibilidade de regresso sem que os porões justifiquem a viagem; gente que toda se entrega à porfiada e total tarefa da pesca, ora azagaiando o peixe, ora içando-o para o dóri, ora erguendo-o no ar como um troféu, ora escalando-o e lavando-o para ser acomodado no porão; gente que parece sempre estar em luta sem tréguas com o mar, envolvida em / 23 / velas, em cadernais, em enxárceas, em escadas de mastros e em rodas de leme; gente que transporta remos, que amarra e desamarra lingadas, que trabalha em redes até ao ponto de parecer colhido como os peixes traiçoeiramente por elas; gente que ergue, apesar de todo o esforço, airosamente a canastra como só as peixeiras e as salineiras o sabem fazer; gente que carrega e descarrega carroças de peixe nas secas, dando voltas e mais voltas, sempre tão trabalhosas, para que não falte o alimento à mesa dos portugueses e sendo sempre tão mesquinhamente retribuída; gente que, no seu trabalho e nas suas aflições, nos intervalos de paz e de repouso, em todos os momentos da sua vida, busca a protecção divina, talvez devido ao desamparo a que a condenou a sociedade dita organizada dos homens - um mundo constituído por esta gente podia deixar de me prender. Ela prende-me sempre nos Pescadores de Raul Brandão. Nos Mares do Fim do Mundo de Bernardo Santareno e nos quadros em que Zé Penicheiro vai ao longo da nossa orla marítima em busca da humanidade mais autêntica que a povoa. Mas a arte de Gaspar Albino, tal como a deste artista, não se deixa mover pela mesquinha intenção de captar a paisagem e o pitoresco que procuram os amadores do bilhete postal. A sua arte é a de um realismo simbólico. Uma arte em que se projecta mais a intenção de fazer da realidade que capta, uma realidade que faça pensar, sentir e irmanar do que a que se satisfaz apenas com o retratar, o reproduzir, o descrever. Um pescador, de olhar fito em algo que não é a realidade material que está à sua frente, mas está muito para além do enquadramento que o cerca, é um desafio a que procuremos interpretar esse olhar, a que perguntemos porque é que esse olhar é tão fixo e tão distante? Cada pescador faz parte de um mundo, mas não deixa de mostrar que, para lá desse mundo, outro mundo traz ele dentro de si. Torna-se assim, símbolo da dor, do drama da ausência, da tragédia da solidão que acompanham o homem sempre que as condições da sua realização pessoal não foram escolhidas e sempre que as razões essenciais da sua vida não estão a ser cumpridas. Raramente as pessoas dos quadros desta exposição coordenam o seu olhar com a acção em que estão envolvidas. Mas mesmo quando tal acontece, esse olhar está sempre para lá do imediato. No rapaz de calções que transporta o leme e os remos, o que se pode retirar do seu olhar é o sonho, aliado à vontade de partir, de cumprir um desígnio que o enche. Mas aqueles ares de boneco, não serão a correcção irónica ao que há de loucura em todos os sonhos inocentes? Já o olhar da mulher da canastra, naquele corpo esbelto de bailarina e por a:>sim dizer impelido por línguas envolventes de azul, que significa ele com aquela dureza quase máscula, com aquela maturidade tão firme? Não será justamente a realidade crua da vida a que um corpo tão belo e jovem, dramaticamente se vê condenado? De qualquer maneira desprende-se desta figura uma certa mensagem de desafio humano, tanto ao nível do erotismo corporal como os da consciência de uma decisão profunda, que tanto pode ser a de virar o rosto às leis morais como a de contrariar o impulso erótico que a impele. Outra dimensão simbólica que me prende é a dos campanários dos templos católicos de Aveiro e da Gafanha. Num quadro, um ser humano solitário, vestido de uma espécie de túnica, parece-me um monge do infinito. Retomando as palavras do saudoso D. João Evangelista, é alguém sentado "à porta da capelinha", pois, na verdade, o infinito associa-se à paz que se derrama em torno dessa figura humana e que / 24 / tanto pode vir do vulto do templo que se eleva junto dela como do céu e do ar que a rodeiam. Noutro quadro, num plano de fundo, erguem-se vários frontais de templos, com as respectivas torres e, no plano central, vêem-se figuras humanas envolvidas em redes, em peixes, em canastras, em barcos. É a vida de Aveiro e a vida da nossa Ria, que assim simbolicamente se fundem, constituindo o resumo essencial da história que não podemos esquecer, se queremos assumir o papel de herdeiros e continuadores do espírito da nossa cidade e da nossa região.

Para terminar, só queria falar muito rapidamente das soluções estéticas que Gaspar Albino mobilizou para dar coesão a todo este mundo tão cheio de realidade e de simbolismo. É claro que falar disto é falar dum elemento do belo de extraordinária importância e que é aquele, neste campo da arte, em que me encontro mais desprevenido. Julgo, no entanto, que algo de essencial, neste aspecto, podemos salientar se encararmos aquilo que, em qualquer arte, forçosamente tem de estar presente - o jogo. Jogo, não o sentido vulgar, do perder e ganhar, mas jogo, no sentido de espaço de liberdade plena em que o criador, no ramo específico em que cria, se serve de formas para dar sentido pleno à sua obra. Em primeiro lugar, uma propositada ambiguidade no tratamento da perspectiva. Num quadro, há roldanas e mais roldanas que rodeiam e embaraçam um pescador. A que dar mais atenção? Às roldanas ou ao homem. Parece que a ambos os elementos. Se não fosse a hipérbole das roldanas, a figura do pescador não mostraria o seu drama que é o de alguém que se vê sufocado por uma técnica implacável. A linha de fuga descoberta pelos renascentistas foi, como sabemos, posta de parte como elemento fundamental pela arte moderna. Gaspar Albino não despreza por inteiro a perspectiva. Mas é o ser mais do que o estar o que acima de tudo o atrai – embora o estar seja a condição determinante do drama humano que retrata. Deste modo, o fundo avança sobre as figuras, enche-se de elementos simbólicos do mar, da ria, das fainas da pesca e do sal: velas, proas, peixes, conchas, linguetas minúsculas de areia, etc.. O azul mistura-se com a cor de fogo, com a brancura, com os cinzentos ténues de neblina, com as cores de carne ou de ferrugem – não sei bem. Também aqui, no aspecto das cores, há uma sábia escolha de quem sabe o que fazer com os pincéis, no tabuleiro que é o quadro e desafia a arte do pintor para conduzir esse jogo. Nestas cores está outra vez a Ria e as azáfamas próprias do seu espaço, a cor da terra que é um constante apelo para quem embarca, o azul e o cinzento esbatido que são as do horizontes que acenam de longe e cobrem as nossas vidas de povo anfíbio, o branco que irradia dos cones de sal – ou irradiava, quando as marinhas funcionavam e Aveiro e as Gafanhas davam o sabor às comidas portuguesas.

Provavelmente, nas impressões aqui deixadas, foram mais os disparates que disse que as coisas acertadas. Mas, pela arte, o artista concentra e, depois da obra realizada, o que tem que fazer quem a observa é abri-la – mostrar como ela pode falar de diversas maneiras, na sua riqueza de volumes, tons e jogos subtis de os conjugar. Só fui até onde a minha incompetência me deixou. Mas pode crer o meu amigo Gaspar Albino que este é o meu testemunho de verdade.

Joaquim Correia

(Professor da Universidade de Coimbra)

 

 

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