|
Moramos na mesma rua e em frente um do outro. Encontramo-nos
frequentemente e o modo habitual de nos cumprimentarmos é assim:
"Olá, Joaquim!"; "Olá, António!". Quando o tempo no-lo permite,
ficamos a rememorar velhas coisas.
Conhecemo-nos desde há muitos anos. Desde os tempos, já distantes,
em
que, lado a lado, trabalhávamos para a Indústria Aveirense de Pesca,
com sede no Rossio e secadouro na Gafanha da Nazaré, então a operar
com um só navio, o João Ferreiro, depois do naufrágio do Mileno.
Para nós, a saga do bacalhau, desde a armação do navio à sua
descarga, desde a pesca do fiel amigo à sua armazenagem, salga,
lavagem, secagem, enfardamento e entrega nas instalações da
Comissão Reguladora do Comércio do Bacalhau – poucos segredos tinha.
Nenhum de nós tivera ainda a oportunidade de embarcar até aos "mares
do fim do mundo", onde a pesca se fazia. Mas a vida a bordo tinha os
seus repórteres espontâneos, desde o capitão ao moço. E sobre a vida
dos trabalhadores da seca nós não precisávamos de cronistas, porque
a podíamos observar sur place, onde ela se desenrolava, sempre que
havia bacalhau para secar, ali diante dos nossos olhos, na Gafanha.
Eu vivia, por essa altura, no Paço e ele na Beira-Mar, mesmo junto à
capela de S. Gonçalinho. Algumas vezes ia a casa dele. Encontrava na
casa dele o mesmo cheiro da ria que entrava pela
minha casa dentro. Dissolvidos na maresia chegavam aos nossos
sentidos também os rumores do bairro - vozes desgarradas de crianças, de
mulheres e de
homens, cujos timbres e melodias, às vezes salpicados de grasnidos
de gaivotas, tinham um encanto indescritível. A somar a este fundo
em que decorriam as nossas conversas, vinha regularmente o toque do
sino da capelinha. Podíamos não estar a entender-nos. Mas, pelo
menos para mim, este cenário me bastava. Era o
tempo ou o espírito do lugar – não distingo bem entre uma e outra
coisa – que me parecia uma espécie de água translúcida e sem peso
que, todavia, nos cercava por todos os lados e tinha a força
bastante para nos suster e alimentar.
Além de partilharmos a circunstância de trabalharmos para a mesma
empresa, partilhávamos uma espécie de destino comum. Assim, o
António, que se revelara um aluno distinto na Escola Comercial, e
eu. que podia continuar a frequentar gratuitamente o Colégio de D.
Pedro V, ambos nós, por solidariedade com as nossas famílias,
decidíramos interromper os nossos estudos para, com a remuneração
dos nossos primeiros empregos, tornar mais desafogada a vida dos
nossos pais e dos nossos irmãos. Um outro traço comum nos ligava – o
do interesse apaixonado pelas coisas da cultura e da arte: ele, especialmente pelas artes plásticas e eu, especialmente pela
literatura. Ambos, na
medida do possível, demos a entender essas inclinações, na
colaboração dada às iniciativas que tomavam corpo na nossa cidade,
puxados por um Vasco /
22 /
Branco, um Mário Sacramento, um João Sarabando, um David Christo, um
Luís Regala... A vida empurrar-nos-ia, entretanto, para espaços
diferentes. Eu tive de trocar o meu emprego no escritório por um
lugar a bordo do arrastão da empresa, fui emigrante em França,
voltei a embarcar para os Bancos da Terra Nova, Labrador e
Gronelândia, o único modo de evitar a participação na Guerra do
Ultramar, e depois disso, tive de percorrer diversas empresas, até
obter a licenciatura em Filologia Românica, frequentando a
universidade como estudante-trabalhador. O António, dispensado do
serviço militar, continuou na mesma
empresa, ao mesmo tempo que ia frequentando o curso de Direito. As
tarefas de
gerente da empresa, a que entretanto subira, não lhe permitiram
concluir o seu curso. E quando a abandonou, já não o pôde concluir,
pois as provas de gestor de sucesso que entretanto dera,
naturalmente o levaram para outros empreendimentos de natureza industrial e comercial. Do que ele não conseguiu
de modo nenhum apartar-se foi dos lápis, dos pincéis, das telas, da
escrita e da palavra, através das quais sempre se afirmou como um
homem de cultura, de arte e de intervenção política – em irrecusável
obediência a uma vocação muito cedo revelada. As várias exposições
individuais e colectivas em que tem dado a conhecer os seus quadros
tornaram-no uma referência viva no mundo da criação artística da
nossa região.
Agora que residimos, um frente ao outro, na Rua Sebastião de
Magalhães Lima e um certo destino de vivermos na proximidade um do
outro nos acompanha, é bom retomarmos, de vez em quando, o diálogo em que
procurávamos dar sentido ao tempo dos nossos sonhos e dos nossos
anseios juvenis. "Olá, Joaquim!"; "Olá, António! Então como vai
isso?" "Tenho ali em casa umas coisas para tu veres". "O que é?"
"Entra e já vês". "Mais algum quadro", digo eu. Mostra-mo e põe-se
de lado, fumando compenetradamente o seu cigarro. Não sou a pessoa
ideal para lhe dar uma boa opinião. Mas gosto sempre dos seus
trabalhos e ressalvando sempre a minha falta de competência para
falar deles devidamente, lá vou dizendo o que melhor me parece. Há dias, disse-me de
chofre: "Vou fazer uma exposição e gostaria de te associar a esse
acto". "Como assim?" "Pondo por escrito aquilo que me tens dito."
–
Não fui capaz de me escusar. Daí que esteja agora a fazer as
presentes garatujas.
O que é que mais me atrai nesta exposição de Gaspar Albino? Em
primeiro lugar, o mundo a que deu forma neste conjunto de obras. Em
segundo lugar, o simbolismo tão vincadamente presente em todas elas.
Por último, a resolução que, no meu humilde entender, ele dá, em
termos artísticos, aos dois primeiros pontos mencionados e me
parecem, na verdade, essenciais. A quem, como eu, passou o maior
tempo da sua vida misturando o quotidiano com o das gentes da nossa
ria e do mar longínquos onde se pesca o bacalhau, o mundo destes
trabalhos não é só dele. É, também aqui, partilhado por mim. Gente
que se deixa envolver por horizontes de azul e brancura, que sonha
antes de embarcar e que enfrenta, nos mares longínquos, a
impossibilidade de regresso sem que os porões
justifiquem a viagem; gente que toda se entrega à porfiada e total
tarefa da pesca, ora azagaiando o peixe, ora içando-o para o dóri,
ora erguendo-o no ar como um troféu, ora escalando-o e lavando-o
para ser acomodado no porão; gente que parece sempre estar em luta
sem tréguas com o mar, envolvida em /
23 /
velas, em cadernais, em enxárceas, em escadas de mastros e em rodas
de leme; gente que transporta remos, que amarra e desamarra lingadas,
que trabalha em
redes até ao ponto de parecer colhido como os peixes traiçoeiramente
por elas; gente que ergue, apesar de todo o esforço, airosamente a
canastra como só as peixeiras e as salineiras o sabem fazer; gente
que carrega e descarrega carroças de peixe nas secas, dando voltas e
mais voltas, sempre tão trabalhosas, para que não falte o alimento à
mesa dos portugueses e sendo sempre tão mesquinhamente retribuída;
gente que, no seu trabalho e nas suas aflições, nos intervalos de
paz e de repouso, em todos os momentos da sua vida, busca a
protecção divina, talvez devido ao desamparo a que a condenou a
sociedade dita organizada dos homens - um mundo constituído por esta
gente podia deixar de me prender. Ela prende-me sempre nos
Pescadores de Raul Brandão. Nos Mares do Fim do Mundo de Bernardo
Santareno e nos quadros em que Zé Penicheiro vai ao longo da nossa
orla marítima em busca da humanidade mais autêntica que a povoa. Mas
a arte de Gaspar Albino, tal como a deste artista, não se deixa
mover pela mesquinha intenção de captar a paisagem e o pitoresco que
procuram os amadores do bilhete postal. A sua arte é a de um
realismo simbólico. Uma arte
em que se projecta mais a intenção de fazer da realidade que capta,
uma realidade que faça pensar, sentir e irmanar do que a que se
satisfaz apenas com
o retratar, o reproduzir, o descrever. Um pescador, de olhar fito em
algo que não é a realidade material que está à sua frente, mas está
muito para além do
enquadramento que o cerca, é um desafio a que procuremos interpretar
esse olhar, a que perguntemos porque é que esse olhar é tão fixo e
tão distante? Cada pescador faz parte de um mundo, mas não deixa de
mostrar que, para lá desse
mundo, outro mundo traz ele dentro de si. Torna-se assim, símbolo da
dor, do
drama da ausência, da tragédia da solidão que acompanham o homem
sempre que as condições da sua realização pessoal não foram
escolhidas e sempre que as razões essenciais da sua vida não estão a
ser cumpridas. Raramente as pessoas dos quadros desta exposição coordenam o seu olhar
com a acção em que estão envolvidas. Mas mesmo quando tal acontece,
esse olhar está sempre para lá do imediato. No rapaz de calções que
transporta o leme e
os remos, o que se pode retirar do seu olhar é o sonho, aliado à
vontade de partir, de cumprir um desígnio que o enche. Mas aqueles
ares de boneco, não serão a correcção irónica ao que há de loucura
em todos os sonhos inocentes? Já o olhar da mulher da canastra,
naquele corpo esbelto de bailarina e por a:>sim dizer impelido por
línguas envolventes de azul, que significa ele com aquela dureza
quase máscula, com aquela maturidade tão firme? Não será justamente
a realidade crua da vida a que um corpo tão belo e jovem,
dramaticamente se vê condenado? De qualquer maneira desprende-se
desta figura uma certa mensagem de desafio humano, tanto ao nível
do erotismo corporal como os da consciência de uma decisão profunda,
que tanto pode ser a de virar o rosto às leis morais como a de
contrariar o impulso erótico que a impele. Outra dimensão simbólica
que me prende é a dos campanários dos templos católicos de Aveiro
e da Gafanha. Num quadro, um ser humano solitário, vestido de uma
espécie de
túnica, parece-me um monge do infinito. Retomando as palavras do
saudoso D. João Evangelista, é alguém sentado "à porta da
capelinha", pois, na verdade, o infinito associa-se à paz que se
derrama em torno dessa figura humana e que
/
24 /
tanto pode vir do vulto do templo que se eleva junto dela como do
céu e do ar que a rodeiam. Noutro quadro, num plano de fundo,
erguem-se vários frontais de
templos, com as respectivas torres e, no plano central, vêem-se
figuras humanas envolvidas em redes, em peixes, em canastras, em
barcos. É a vida de Aveiro e a vida da nossa Ria, que assim
simbolicamente se fundem, constituindo o resumo
essencial da história que não podemos esquecer, se queremos assumir
o papel de herdeiros e continuadores do espírito da nossa cidade e
da nossa região.
Para terminar, só queria falar muito rapidamente das soluções
estéticas que Gaspar Albino mobilizou para dar coesão a todo este
mundo tão cheio de realidade e de simbolismo. É claro que falar
disto é falar dum elemento do belo de extraordinária importância e
que é aquele, neste campo da arte, em que me encontro mais
desprevenido. Julgo, no entanto, que algo de essencial, neste
aspecto, podemos salientar se encararmos aquilo que, em qualquer
arte, forçosamente tem de estar presente - o jogo. Jogo, não o
sentido vulgar, do
perder e ganhar, mas jogo, no sentido de espaço de liberdade plena
em que o criador, no ramo específico em que cria, se serve de formas
para dar sentido pleno à sua obra. Em primeiro lugar, uma
propositada ambiguidade no tratamento da perspectiva. Num quadro,
há roldanas e mais roldanas que rodeiam e embaraçam um pescador. A
que dar mais atenção? Às roldanas ou ao homem. Parece que a ambos os
elementos. Se não fosse a hipérbole das roldanas, a figura do
pescador não mostraria o seu drama que é o de alguém que se vê
sufocado por uma técnica implacável. A linha de fuga descoberta
pelos renascentistas foi, como sabemos, posta de parte como
elemento fundamental pela arte moderna. Gaspar Albino não despreza
por inteiro a perspectiva. Mas é o ser mais do que o estar o que
acima de tudo o atrai – embora o estar seja a condição determinante
do drama humano que retrata. Deste modo, o fundo avança sobre as
figuras, enche-se de elementos simbólicos do mar, da ria, das fainas
da pesca e do sal: velas, proas, peixes, conchas, linguetas
minúsculas de areia, etc.. O azul mistura-se com a cor de fogo, com
a brancura, com os cinzentos ténues de neblina, com as cores de
carne ou de ferrugem – não sei bem. Também aqui, no
aspecto das cores, há uma sábia escolha de quem sabe o que fazer com
os
pincéis, no tabuleiro que é o quadro e desafia a arte do pintor para
conduzir esse jogo. Nestas cores está outra vez a Ria e as azáfamas
próprias do seu espaço, a cor da terra que é um constante apelo para
quem embarca, o azul e o cinzento esbatido que são as do horizontes
que acenam de longe e cobrem as nossas vidas de povo anfíbio, o
branco que irradia dos cones de sal – ou irradiava, quando as
marinhas funcionavam e Aveiro e as Gafanhas davam o sabor às comidas
portuguesas.
Provavelmente, nas impressões aqui deixadas, foram mais os
disparates que disse que as coisas acertadas. Mas, pela arte, o
artista concentra e, depois da obra realizada, o que tem que fazer
quem a observa é abri-la – mostrar como ela pode falar de diversas
maneiras, na sua riqueza de volumes, tons e jogos subtis de os
conjugar. Só fui até onde a minha incompetência me deixou. Mas pode
crer o meu amigo Gaspar Albino que este é o meu testemunho de
verdade.
Joaquim Correia
(Professor da Universidade de Coimbra)
|