O
ante-projecto do porto a construir por norte do canal de São Roque
previa uma extensão total de 822 metros de cais, sendo 280 ao longo do
que então se chamava, pomposamente, “avenida marginal de San Roque” e
542 metros de acostagem às pontes-cais. Julgava-se que o projectado
cais de 280 metros satisfaria “durante os primeiros anos de exploração
do porto às necessidades comerciais, ficando a construção das pontes
acostáveis dependente do eventual desenvolvimento do tráfego”.
Na
memória descritiva acrescentava-se: “Com relação à função reservada ao
projectado porto de pesca, há a notar que a situação especial desse
porto em relação ao centro do país, a que ficará ligado por diversas
linhas de viação acelerada, ao lado de um mercado que, além da sua
importância local, abastece outros concelhos e estâncias termais
frequentadas, e a inclinação tradicional da população ribeirinha,
desde Ovar até Mira, para a vida marítima, em especial a dos homens de
Ílhavo que constituem uma grande parte das tripulações da marinha
mercante, são indícios da importância da função que esse porto virá a
exercer. O seu cais comportará a acostagem simultânea de quatro
vapores de pesca do alto e sete traineiras, ou cinco unidades de cada
uma destas classes de barcos, que encontrarão no porto todas as
facilidades de descarga dos seus carregamentos, de abastecimento e
beneficiação, sendo de crer que, iniciada a sua exploração, não se
fará esperar a iniciativa local na constituição de empresas de pesca
que darão vida ao porto que, desde que estejam confirmados os seus
créditos, não deixará de atrair os barcos de empresas constituídas
noutras localidades.” E, como corolário inevitavelmente lógico de tudo
isto, concluía-se de forma encomiástica: “Tudo leva, pois, a crer que
o projectado porto de pesca está destinado a criar uma importante
fonte de riqueza e a concorrer para o bem-estar dos povos que pelo
mesmo venham a ser servidos.”.
À luz
dos dias de hoje parece incrível que se tenha sequer pensado construir
um porto na margem norte do Canal de São Roque. Mas foi assim mesmo
que em 1925 surgiu o anteprojecto traçado primeiramente pelo
Engenheiro António Craveiro Lopes e depois melhorado, completado e
apresentado pelo Engenheiro Von Hafe. O Engenheiro Coutinho de Lima
lembra tudo isto em escrito de 1955, numa das peças de memorável
polémica que se terçou na imprensa local da altura, a propósito de uma
hipótese de eliminação do canal do Cojo, verdadeiro exercício de
cidadania que irei recuperar em futuro trabalho. Como já também
referi, Homem Cristo fez subir aquele projecto às instâncias
superiores e conseguiu a sua aprovação.
Coutinho de Lima explica-nos nesse mesmo escrito as razões por que o
projecto não foi avante e que levaram a procurar outra solução para o
porto interior.
Veja-se só o trabalhão e o dispêndio que esse tal projecto do porto de
São Roque implicava. Esse porto interior seria “constituído por um
canal a abrir por dragagem através das marinhas e seguiria ao longo do
Esteiro dos Frades, desde as proximidades da casa Rebocho, na Ilha de
Sama, até à ponte-cais das Pirâmides, na Cale da Veia. Desde a
ponte-cais das Pirâmides até ao Canal de São Roque, abrir-se-ia,
também por dragagem, uma bacia de 11 hectares de superfície, onde se
construiriam vários cais acostáveis destinados uns a atracação de
navios de alto bordo e outros à atracação de traineiras. Um navio
entraria no novo porto interior num ponto situado próximo da casa
Rebocho e seguiria pelo respectivo canal de 6 metros de profundidade
em baixa-mar até à bacia aberta nas marinhas que ficam em frente do
Canal de São Roque e, aí, evolucionaria para atracar ao cais. Os cais
seriam servidos por vias-férreas, estradas e terraplenos de muito
reduzida dimensão”. Para obra tão acanhada (apetece dizer, quase, que
se quereria meter o Rossio na Betesga!), o seu custo de primeiro
estabelecimento atingia aos valores da época: “para se obter o
primeiro metro de cais comercial ter-se-ia de gastar 35.000 contos com
a abertura do canal entre a casa Rebocho e a bacia de evolução em
frente ao Canal de São Roque. E para se obter o primeiro metro de cais
de pesca seria necessário gastar mais de 20.000 contos na abertura da
bacia de evolução e revestimento parcial das suas margens. Acresce que
uma parte significativa dos cais de acostagem ficaria muito próxima
das casas que marginam, por sul, o canal de São Roque. Por outras
palavras: as embarcações ficariam “em cima dessas casas”. Mais: o
canal de São Roque tem na sua base um banco de argila que se afunda
para norte, para o lado da Cale da Veia, dando lugar a lodo que atinge
enorme profundidade. Dizia o Engenheiro Coutinho de Lima que tal não
seria inconveniente de maior para os cais de pesca; mas já não assim
para o cais comercial onde a carga teria de ser calculada entre 3.000
e 6.000 quilos por metro quadrado, o que atiraria os custos em
fundações para valores incomportáveis. Enormes custos de construção
mais áreas tacanhas em cima da cidade vieram a pôr de parte tão
peregrino projecto.
Ainda
bem que assim aconteceu pois que tal permitiu o rasgar de projectos
com vistas mais largas que, ainda hoje, decorridos três quartos de
século, permitem pensar o Porto de Aveiro com fôlego dilatado.
Fui
daqueles que se manifestaram contra a implantação do IP5 no traçado
que veio a ter vencimento. Continuo a achar que tal via se poderia ter
desenvolvido por norte das marinhas do Quinhão de São Roque, deixando
que a cidade ribeirinha respirasse a paisagem que só a Ria lhe
garante. Tal não aconteceu e, agora, a via-férrea que se vai construir
ainda mais irá ancorar aquilo que, quanto a mim, nunca deixou de ser
camisa-de-forças para a nossa cidade. Mas quem sou eu para assim
pensar? |