Luís Gomes de
Carvalho, o engenheiro a quem se deve, em larga medida, o que Aveiro é
hoje, compreendeu, desde logo, que “o porto não devia ter apenas a
função local que desempenhara no século XVI. Com notável visão de
futuro, pretendeu dar-lhe função regional, organizando a penetração
económica para o interior por meio das vias fluviais.” Foi nestes
termos que o saudoso Comandante Rocha e Cunha continuou, na sua
comunicação ao Congresso das Beiras, a referir-se a Gomes de Carvalho,
engenheiro de “profundos conhecimentos técnicos de hidráulica” e
portador de uma concepção moderna de porto regional. Com efeito, ele
chegou a conceber o projecto que tornaria navegável o rio VOUGA até
São Pedro do Sul e navegáveis também os rios Águeda e Cértima. Com uma
visão abrangente da realidade lagunar, projectou e executou ainda o
plano de recuperação dos terrenos do baixo Vouga, permitindo que se
convertessem em fertilíssimos terrenos agrícolas. Rocha e Cunha
apelidou de grandiosa a obra de Luís Gomes que se não ficou, como
vemos, pelos trabalhos de abertura da barra de Aveiro. Vítima de
calúnias, vitupérios, “vexado por perseguições odiosas”, foi forçado a
interromper em 1823 o seu tão meritório trabalho em consequência de
lutas políticas. Veio a morrer em 1829 e, durante os seguintes 35
anos, nem sequer foi feita a conservação do excelente trabalho que o
engenheiro tinha realizado. Em 1858, a “ruína total era iminente: a
barra estava assoreada e as endemias palustres voltaram a devastar as
populações”. A ruína vivida no século XVIII estava de novo a
martirizar Aveiro. Mas, sob a direcção do engenheiro Silvério Pereira
da Silva foi retomada a visão de Luís Gomes e as obras de recuperação
foram postas em andamento, somente com as limitações impostas pela
engenharia hidráulica da época. Reconstruído o paredão de Luís Gomes,
a barra de Aveiro voltou a permitir a “restauração económica da
região”. A agricultura voltou a ser pujante, com os terrenos a serem
de novo adubados com o moliço que a Ria voltou a produzir em grandes
quantidades. Os pântanos e charcos foram saneados pela entrada franca
das águas do mar. As marinhas de sal voltaram a produzir. A pesca
lagunar ressurgiu.
O Comandante
Rocha e Cunha afirma em pleno Congresso das Beiras que “este é um dos
fenómenos mais interessantes da história económica do nosso país”. E
antecede: “Se Aveiro não tivesse à disposição a via marítima, não
poderia, antes do advento da viação ordinária e dos caminhos-de-ferro,
realizar tão rapidamente pelo próprio esforço a sua reconstrução”. Em
1865, o movimento marítimo do porto chegou a ser de 465 navios, não só
de cabotagem mas também de longo curso”. Mercê da acção política do
nosso tribuno maior, José Estêvão, Aveiro, entretanto, passou a ser
servida por caminho-de-ferro, facto este que, de modo significativo
afectou a navegação de cabotagem que frequentava os portos
secundários. “Como todos os portos secundários, o de Aveiro decaiu
rapidamente por não poder satisfazer às novas condições económicas; a
sua função local ficou muito reduzida pela concorrência das
linhas-férreas”. Contudo, no dia 24 de Agosto de 1912, um decreto do
Ministério do Fomento declarou de utilidade pública e urgente a
expropriação de três parcelas de terreno para a construção do
prolongamento de uma linha férrea de serviço entre a estação de Aveiro
e o canal de São Roque, cujo projecto fora aprovado em 11 de Abril do
mesmo ano. Isto no sentido de transformar a concorrência do
caminho-de-ferro em sinergia assente na complementaridade dos meios.
Nesse sentido, o palestrante afirma que essas mesmas ligações
ferroviárias provocaram o desaparecimento da característica de
isolamento que o antigo porto de Aveiro tinha. (Eu, e como eu muitos
de nós, aveirenses, ainda me lembro da linha férrea na margem sul do
canal de São Roque que terminava no pequeno canal que serve a praça do
peixe.) Face à essa nova realidade, transporte ferroviário mais
transporte rodoviário, o Estado entendeu fazer uma reformulação da sua
política de portos e desencadeou uma avaliação das possibilidades do
porto de Aveiro no novo contexto. Foi feito um levantamento, à época,
das actividades económicas, locais e regionais, que o Comandante Rocha
e Cunha descreve na sua comunicação de forma exaustiva, mas que nós,
aqui, só referiremos destacando os pontos mais significativos para
definir o que seria o futuro porto. Por aí ficamos a saber que o
salgado de Aveiro, por altura do Congresso Beirão de l928, produzia
50.000 toneladas, das quais 12.000 eram exportadas por via marítima
para o norte do país. As restantes saíam por caminho de ferro.
Previa-se, então, que poderiam vir a ser exportadas para o norte da
Europa mais de 30.000 toneladas de sal, estimando-se que a capacidade
produtiva da Ria de Aveiro poderia atingir as 100.000 toneladas
anuais. Os vinhos da Bairrada eram encarados como podendo vir a ser
exportados pelo nosso futuro porto em alternativa aos portos do Douro
e de Lisboa. A cerâmica, localmente produzida e exportada por via
terrestre, admitia-se que pudesse também vir a ser exportada por via
marítima. Isto em matéria de exportações. Quanto às importações,
encarava-se a necessidade de adequar o futuro porto para receber e
servir de centro de distribuição de “combustíveis sólidos e líquidos,
óleos e matérias primas”. Como porto de pesca, referia-se que Aveiro,
já então primeiro porto de armamento de bacalhoeiros, tendo armado 14
navios em 1927 e preparando-se para armar 20 para a pesca na Terra
Nova, poderia vir a ter uma frota de pesca longínqua constituída por
50 navios dentro de poucos anos., passando da captura de 2.176.000
quilogramas de bacalhau no valor de 8.000 contos, em 1927, para uma
captura anual de 8 a 10.000.000 de quilos do “fiel amigo”, com essa
frota de 50 barcos. Quanto à pesca costeira existente, esta só
explorava uma área atlântica de 56 milhas quadradas, quando os
pesqueiros susceptíveis de exploração teriam um superfície de 1.600
milhas quadradas. O trabalho do Comandante Rocha e Cunha registava,
ainda, que, em 1927, o produto da pesca costeira tinha atingido o
valor de 7.800 contos, enquanto que a pesca lagunar e fluvial rendera
1.722 contos.
Retiramos do
relatório elaborado pelo engenheiro Von-Haffe, referente ao novo porto
de Aveiro (o tal que estava projectado para a margem norte do Canal de
São Roque…), os seguintes passos: “Criado o novo porto de Aveiro, é de
crer que a sua zona de influência abranja toda a região compreendida
entre o Baixo Douro e o Mondego, cuja produção agrícola e industrial,
já bastante considerável, se desenvolverá necessariamente desde que
lhe seja facilitada a exportação dos seus produtos e a importação de
mercadorias de que carece para seu abastecimento. Dispondo de um porto
bem situado, bem apetrechado para o rápido despacho de mercadorias e
directamente ligado à rede geral de estradas e de caminhos de ferro,
não resta dúvida de que esse porto deverá ser preferido a outros mais
dispendiosos para os quais já esteja canalizado o tráfego dessa
região. E depois de referir as possibilidades de exportação de
minérios das minas do Vale do Vouga, do Braçal e de outras, de toros
de pinheiro das nossas matas para o norte da Europa; dos “reputados
vinhos da Bairrada”; dos vinhos do Paiva, de azeite, de cerâmica, de
madeiras serradas, de conservas, do sal das nossas marinhas, tudo
isso, dizia Von-Haffe, há-de “concorrer para avolumar o tráfego do
novo porto”. Calculava o engenheiro que a “importância do tráfego do
porto comercial de Aveiro se elevaria a um terço da do porto de
Leixões. Com estes fundamentos se lançava a máquina de desenho sobre o
estirador para urdir o porto sonhado para o Canal de São Roque.
Continuaremos.
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