Ainda me lembro bem do estaleiro
do Tobias, na margem norte do canal de São Roque, mesmo ao pé da ponte
dos Carcavelos, não esta de cimento, mas a outra, a de madeira, pela
qual passei muitas vezes com a minha avó Guilhermina quando ela ia
levar a “lavage” para alimentar, com vossa licença, o porco que se
guardava num dos currais que por lá abundavam.
Era neste estaleiro que se
construíam embarcações da nossa Ria, principalmente caçadeiras,
bateiras e mercantéis. E era lá, também, que as mesmas eram submetidas
a reparações de manutenção: substituição de tábuas do costado e de
cavernas mais abaladas, trabalho de calafeto e pintura com piche que,
ainda em fresco, era coberto de serradura para garantir alguma abrasão
e dificultar que se derretesse com as temperaturas mais elevadas de
verão.
Tenho saudades do tempo em que a
margem sul do canal de São Roque era um extenso estaleiro, onde as
bateiras eram postas de carena para facilitar os pequenos arranjos que
os seus donos, eles mesmos, executavam, ajudando-se uns aos outros.
O canal do Cojo, actualmente
designado de Canal da Fonte Nova, que ia até à Fábrica Campos, hoje
Centro de Congressos e onde a nossa Câmara tem parte significativa dos
seus serviços, era o caminho marítimo, qual estrada, por onde
circulavam os mercantéis ajoujados de telha e tijolos. À vara, lá
partiam eles até às Pirâmides; e daí seguiam à vela, levando as suas
cargas para todos os cantos da Ria, mas, principalmente, para o canal
de Ovar, em cujo extremo as mercadorias eram transbordadas para outros
meios de transporte para todo o norte do País.
Aveiro em Março de 1900.
Nas margens do canal Central,
das pontes, hoje ponte-praça, até à Dobadoura, estavam sempre varados
mercantéis à espreita de fretes.
De tudo isto, felizmente que há
registo fotográfico a garantir-nos memória de tempos idos em que estas
possantes embarcações, os mercantéis e os saleiros, desempenhavam a
função para que tinham sido criadas: o transporte de mercadorias. Não
era frequente ver-se moliceiros atracados ao cais. E a cor dominante
nestes barcos era o preto do piche, salpicado de amarelo da serradura,
que na coberta da proa era mais evidente.
Houve uma altura em que um
engenheiro da Delegação Distrital da Junta Autónoma das Estradas, se a
memória me não atraiçoa, teria sido o engenheiro Cunha Amaral, lançou
num jornal da terra a ideia de arrasar o Canal do Cojo, que exalava um
cheiro nauseabundo, transformando-o em via rápida de acesso ao centro
de Aveiro.
Esta sugestão, pois nunca passou
disso mesmo, deu origem a intensa troca de razões entre pessoas gradas
da nossa terra que, em artigos de excelente recorte literário como era
apanágio desses tempos, procuraram esconjurar tal ideia. O saudoso
Eduardo Cerqueira comparou o canal do Cojo a um dedo de mão que
estaria a apresentar sintomas de gangrena, que deveria ser objecto de
tratamento curativo adequado obviando amputação destruidora. E o
também saudoso engenheiro Coutinho de Lima, então director da Junta
Autónoma do Porto de Aveiro, entendeu dever vir à liça, afirmando que
canal do Cojo nunca deveria ser destruído pois, por ele, com adequadas
dragagens, poderiam vir a circular embarcações de transporte de
mercadorias com 200 toneladas de arqueação bruta, se o futuro viesse a
permitir o surgir de uma zona industrial nas suas margens. Se se
compulsar uma colecção do semanário “Correio do Vouga”, lá
encontraremos os nacos de excelente prosa que estes ilustres
aveirenses nos deixaram como legado.
Depois, durante muito tempo, o
Canal Central quase que deixou de ter vida. As marinhas deixaram de
funcionar. Os mercantéis deixaram de ter mercadorias para transportar.
E só nas Festas da Ria é que a alacridade dos moliceiros da Murtosa
invadia a cidade, mostrando assomos de outros tempos.
Mas, um dia, o engenho de alguns
descobriu novas funções para os moliceiros e para os mercantéis: o
transporte de turistas que, assim, começaram a poder desfrutar das
belezas dos nossos canais urbanos. E a iniciativa, tímida ao
princípio, transformou-se num êxito, que voltou a dar alegria e cor à
nossa cidade. Tem havido quem tenha criticado o uso que é dado às
embarcações tradicionais da nossa Ria como barcos de transporte de
turistas.
Mas, nestas questões, confesso
que não sou um purista. Seria bom que tivéssemos no canal Central um
exemplar de cada embarcação tradicional com toda a sua palamenta, para
que quem nos visita pudesse saber como eram tais embarcações. Mas
também entendo que os tempos que correm exigem resposta com
sustentação económica, ainda que tal obrigue a adaptações que
permitam, na legalidade, em termos de segurança, o uso de embarcações
que nos fazem lembrar tempos idos.
Vi há dias uma embarcação que dá
ideia de um mercantel, mas que não o é, pela sua evidente maior
arqueação e pelo bordo livre mais avantajado. Quando me aproximei do
barco, reparei no conforto oferecido aos utentes, na existência de
meios de salvamento adequados à função, nos instrumentos de
sinalização e de iluminação, na motorização.
Não lhe chamem mercantel. Não é
necessário. O que importa é que seja garantida a quem nos visita a
possibilidade de apreciar as belezas dos nossos canais com o maior
conforto e segurança possíveis.
Curiosamente, esta nova
embarcação a operar na nossa ria chama-se RUI BARROS.
E Rui Barros é o nome do cidadão
a quem se deve esta verdadeira revolução na vida dos canais da Ria da
Aveiro, que aponta para o gozo das suas belezas com viabilidade
económica.
Nos tempos que correm, isto é verdadeiramente importante.
Gaspar Albino — 2012-04-27 |