Durante os meus cinco anos de estudante universitário, três em Aveiro e
dois em Coimbra, esturriquei as pestanas a estudar. Nos oito em que
frequentei o Liceu de Aveiro, pouco ou nada olhei para o interior dos
compêndios escolares.
Assim, tive imenso tempo para me dedicar a actividades circum-escolares,
principalmente nos últimos três anos. Inscrevi-me em várias modalidades
desportivas da Mocidade Portuguesa, incluindo o Montanhismo, que nunca
chegou a funcionar, integrei a equipa de Basquetebol do Liceu e
representei o Centro de Xadrez Nº 3, em vários torneios, disputados em
Aveiro e no Porto.
Estive em acampamentos, começando por um no Olho de Água, quando ainda
andava no 2º ano, e nos pinhais de Mira. Mais tarde e já na Milícia,
acampei no Buçaco, na Maceira do Liz e em São Jorge da Batalha.
Feitas as contas, creio poder afirmar que rentabilizei largamente os 20
escudos (€ 0,10) que os meus pais tinham de pagar, no acto da matrícula,
para eu pertencer, obrigatoriamente, a essa Instituição.
No que respeita às actividades que usualmente monopolizam a denominação
Cultural – então o Desporto também não é Cultura?! –, para além de fazer
umas versalhadas para ganhar dinheiro para o tabaco, dediquei-me, como o
título indicia, ao Teatro estudantil, acções de que seguidamente farei
uma breve resenha.
Fui co-autor dos textos dos Actos de Variedades intitulados “Os
Companheiros da Desgraça”, paródia aos “Companheiros da Alegria”, das
Récitas de Finalistas de 1953-54 e 1954-1955.
Na Récita de 1953-54, na 1ª Parte, denominada “Figuras Vicentinas” e com
arranjo do Reitor Dr. José Pereira Tavares, desempenhei o papel,
escolhido a dedo, de “Preguiçoso”, entrando em cena a dizer: “Não há
aí favo de mel mais doce do que a preguiça. É mais desenfadadiça que bom
pomar ou vergel...” (Para minha boa surpresa, constatei que, hoje,
dia 12 de Junho de 2015, me recordo de uma coisa que tive de dizer, na
noite de 8 de Abril de 1954.) Na 2ª Parte, fui o Conde de Azinhais, na
peça de Chagas Roquete “A Sonata”. Na 3ª Parte, bailei a Dança dos
Pauliteiros de Miranda.
Em Dezembro de 1954, realizou-se um “Sarau Comemorativo do 1º Centenário
da morte de Almeida Garrett”, elaborado e realizado por alunos do Liceu
de várias gerações. Entrei na peça “O Alfageme de Santarém”, no papel de
Mendo Pais.
Na Récita de 1954-55, fui o 1º Locutor do Acto de Variedades e
Contra-Regra das peças que constituíram as duas primeiras partes do
espectáculo: “Entre a Flauta e a Viola”, de Camilo Castelo Branco e “Uma
filha para dois pais”, de José da Câmara Manoel.
Aliás, na primeira destas peças, aconteceu uma peripécia relacionada com
a contra-regragem que vou contar, por ser curiosa e ter graça – agora,
na altura não teve piada nenhuma, pois não ganhei para o susto.
O enredo era simples e comum: uma jovem (a Eneida) e dois apaixonados;
um tocador de flauta (o Mendes) e outro de Viola (o Parracho). A certa
altura, os dois resolviam fazer uma serenata à mulher amada, sem saberem
um do outro.
O da viola, que tinha sido escolhido para o papel, porque sabia tocar o
instrumento e tinha uma voz romântica que lhe permitiu, mais tarde,
fazer parte da “Orquestra de Tangos da Universidade de Coimbra”, era o
primeiro a entrar em cena e cantou os seguintes versos de Camilo, com
música do nosso professor de Canto Coral, José Queirós:
Eu na Póvoa descansado
Já não sentia desvelos,
Eis que surge o anjo amado
E eu a sigo até Barcelos.
Acorda menina,
Não durmas agora,
Enquanto se fina
De dor quem te adora.
O pretendente seguinte era o Mendes que, sendo um tenor solista na
melodia do paleio e maestro na arte do engate, de flauta não percebia
nada. Assim, estava previsto que um músico tocasse o respectivo solo,
entre-cenas; era ele o senhor Severino, maestro da Banda do Internato
Distrital, Instituição de que era Prefeito. Momentos antes da entrada em
cena do serenatista da flauta, apercebi-me de que o músico a
sério não estava no sítio previsto. Não sabendo o que fazer, chamei o
senhor professor Simão, ensaiador vitalício de todos os espectáculos do
Liceu, e comuniquei-lhe o que se passava. Pensou um momento, disse-me
para dar entrada ao Mendes e dirigiu-se apressadamente para a traseira
da porta, diante da qual seria simulado o solo de flauta, já que o
cenário não tinha janela. Eu fui atrás dele, em pânico, e o Mendes, sem
saber de nada, chegado ao local previsto na marcação, sacou da flauta
desmontável, do bolso interior da batina, começou a enroscá-la e levou-a
aos lábios. Entretanto, o senhor Simão tinha entreaberto a porta e
preparava-se para executar um solo de assobio, para substituir o do
instrumento em falta, quando se ouviu uma flauta tocar a melodia
prevista, que pensei provinda do Céu, em resposta às minhas súplicas.
Explicação bem mais profana: o senhor Severino tinha tido um acidente de
trânsito e estava com problemas de mobilidade, pelo que já se encontrava
no fosso da orquestra, onde deveria actuar na 3ª Parte, preenchida por
um Acto de Variedades que, a crer no programa, era constituído por
“Bailados + Canções + Paródias + Alegria”.
Em 1954 ou 1955, realizou-se, no Teatro Aveirense, tal como todos
os outros espectáculos, até aqui referidos, um Sarau de Homenagem a Eça
de Queirós, do programa do qual constava uma adaptação do conto “O
Tesouro”, cuja personagem principal, Rui de Medranhos, era desempenhado
pelo atrás referido professor primário, José Duarte Simão. Eu era, mais
uma vez, o Contra-Regra.
O cenário representava uma paisagem de montanha: um pano de fundo,
várias pernadas, alguns repregos a simular os rochedos e outras
asperezas do terreno e, na esquerda baixa, uma fonte com um mecanismo
que permitia à água correr sem parar. Na cena final, depois de ter
matado o irmão Rostabal, cujo cadáver jazia junto à nascente, Rui
agonizava, perto da arca do tesouro, depois de ter bebido o vinho
envenenado que tinha sido trazido da aldeia pelo outro irmão, Guanes,
entretanto assassinado por Rostabal.
Eu estava agachado atrás de um dos repregos, a fim de dar sinal para que
o pano de boca fosse fechado, mal a personagem morresse. Mas o senhor
Simão, nas vascas da morte, estava entusiasmado e nunca mais morria.
Caía, levantava-se, tombava de novo, rastejava, soltando gritos, gemidos
e imprecações e, quando parecia que tinha dado o último ai, voltava ao
princípio, alterando totalmente o que tinha sido feito nos ensaios. A
certa altura, quando caiu perto de mim, pareceu-me que tinha sido de vez
e perguntei-lhe baixinho: “O senhor Simão já morreu?” Lançou-me
um olhar furibundo e sussurrou: “Não.” Passado um pouco, caiu, de
novo, virado para mim, e disse: “Já.” Dei sinal ao senhor Álvaro
e a cortina correu, debaixo de uma estrondosa ovação que, por certo, me
livrou de levar um raspanete.
Estas participações em espectáculos teatrais levaram-me a estabelecer
uma grande e duradoura amizade com o senhor Belmiro Fartura, Fiel do
Teatro Aveirense e considerado, por muito boa gente, como o melhor
carpinteiro de palco do País. Um dia, perguntou-me se eu queria ir ver
um espectáculo de revista com a Ivone Silva, cujo título, se a memória
me não falha, era “Ó Zé aperta o Laço”. Aceitei de imediato, por várias
razões: gostava de Revista; a Ivone era uma grande artista; a minha
magra semanada não me permitia comprar bilhetes de teatro, nem para o
segundo balcão, vulgo galinheiro. A minha entrada gratuita dependia de
três coisas: tinha de ir de capa e batina (não tinha, mas pedi o trajo
emprestado); era necessário outro estudante (foi o Zé Luís Christo); e
tínhamos de mandar duas bocas, em momentos combinados, a que a Ivone
responderia com uns versos.
De posse dos bilhetes e tendo-nos sido dito qual o momento em que
deveríamos intervir, o Zé Luís sentou-se a meio da sala, do lado
esquerdo e eu do lado contrário. Na altura combinada, o meu condiscípulo
deu a sua deixa, a Ivone respondeu em verso e a assistência riu. Quando
chegou a minha vez, as coisas passaram-se de igual maneira. Aconteceu,
porém, que, à minha frente, estava sentado o senhor Aurélio Costa,
pessoa idosa, funcionário da Câmara Municipal, sempre impecavelmente
vestido, antigo membro do Grupo Cénico do Clube dos Galitos, que agia,
gesticulava e falava como se estivesse permanentemente a contracenar com
a Dona Amélia Rey Colaço, nos anos 40, o qual sussurrou, de maneira a
que meia sala ouvisse: “Estes fedelhos, estes estudantes a quererem
meter-se com uma artista desta categoria.”
12.06.2015 |