Arnaldo Vasconcelos nasceu em Viseu. Foi primeiro sargento e primeiro
fagote da Banda da Guarda Nacional Republicana, em Lisboa, e passou uma
boa parte do resto da vida em Aveiro, dirigindo várias Bandas regionais
e copiando partituras para arredondar a pensão da reforma, num tempo em que não
havia fotocópias.
Para além de ser um super-contador de anedotas, tinha piada, o que não só
não é a mesma coisa, mas é também muitíssimo mais raro e difícil. Tive a
oportunidade de conviver frequentemente com ele e vou contar, não
nenhuma das suas saborosas anedotas, em que, muitas vezes, dada a sua
idade, se permitia assumir o papel de personagem principal, mas algumas
situações a que assisti e, até, participei, se bem que como personagem
secundaríssima.
Até aos anos 70, a Câmara Municipal instalava um Posto de Turismo no
Recinto da Feira de Março, que se realizava no Rossio. À tarde, depois
de sair do serviço, eu costumava ir à cervejaria do meu amigo Augusto
beber um fininho com tremoços e amendoins e cavaquear com amigos. Um
dia, encontrei o senhor Vasconcelos, que me convidou para a sua mesa.
– Senta-te aí, meu menino. Vamos lá a ver como estamos de anedotas.
E começou a desbobinar. Eis senão quando, chegou um comum amigo,
especializado na ciência do engate, mas que, tendo acabado de frequentar
um Curso da Cristandade, em Mira, atravessava um período de
missionarismo com que pretendia levar para o seu rebanho ovelhas
perdidas e ronhosas, classificações em que nos incluía. Depois de uma
longa peroração, confessou:
– Eu reconheço que fui um grande pecador, pelo que, por vezes, castigo a
minha carne. Ainda esta manhã, quando estava a tomar o pequeno-almoço,
peguei na cafeteira, sem saber que estava a ferver, mas não tirei a mão,
para castigar a carne.
– Mas que raio de culpa tem a carne de ser comandada por um espírito
burro? – Foi a resposta imediata do senhor Vasconcelos, ficando o neo-mártir
militante com um sorriso amarelo e saindo nós. Na curva do Rossio, disse
o meu amigo:
– Vamos ter sermão e missa cantada. Vem ali o amigo Seis em Ponto.
Tratava-se do Padre Fernandes, Prior da Vera Cruz e amigo de longa data
do senhor Vasconcelos, o qual, após os cumprimentos da praxe, perguntou:
– Então como vai essa bizarria, amigo Vasconcelos?
– Isto não está nada bem, amigo Padre Fernandes. Tenho andado cá com uma
tosse, sempre com o pingo no nariz... Estou convencido que não duro até
à Páscoa.
– Qual tosse qual quê. O senhor tem uma saúde de ferro, há-de
enterrar-nos a todos.
– Isso diz o senhor, mas eu estou convencido que, lá para o Verão, já
estarei a tocar fagote, na Banda do Inferno.
– Esse pessimismo nem parece seu que é uma pessoa não só bem disposta,
mas também especialista em alegrar os outros com os seus ditos e
histórias, faceta esta que Deus não deixará de ter em atenção,
reservando-lhe um lugar de solista, na Orquestra Celestial, porquanto
alegrar os tristes é uma virtude que muito agrada a Deus...
– Amigo Padre Fernandes, agradeço-lhe muito as suas palavras, mas não
perca o seu tempo, porque estivemos agora os dois com um dos seus
caixeiros viajantes, que já nos vendeu a mercadoria toda.
– O senhor Vasconcelos é um brincalhão. Tem sempre uma graça para tudo,
mas não me põe zangado consigo e sabe que sou seu amigo e, para lho
provar, vou fazer-lhe um convite e uma surpresa: no domingo, quer vir
passear comigo?
– Onde? À Avenida?
– Não, à minha terra. Chegou hoje o papelzinho vermelho. (Cor das
antigas cartas de condução).
– Obrigado, não posso, tenho ensaio da Banda de Vale de Cambra. Mas
aproveite bem o popó. Vá gozando este mundo e impinja o outro aos
paroquianos.
Despedimo-nos, entrámos na Feira e disse-me:
– O Cana da Índia não se zanga comigo, porque sabe que falo bem dele a
toda a gente e que lhe digo, a sós: vá dando tudo o que tem aos
necessitados que, ainda, há-de morrer mais pobre do que eles.
Em 1959, ano em que se comemoraram duas importantes efemérides
aveirenses – Milenário e Segundo Centenário da elevação a cidade –, o
Posto de Turismo foi instalado na Avenida Dr. Lourenço Peixinho, perto
do Automóvel Clube de Portugal, o que me obrigava a passar
frequentemente junto à esplanada do Trianon, um dos pousos habituais do
senhor Vasconcelos. Um dia, chamou-me e perguntou-me:
– Olha cá, meu menino. Já reparaste na lata do fotógrafo?
– Porquê, senhor Vasconcelos?
– Então não estás a ver que ele está a fazer concorrência ao senhor
Armando.
Abro um parêntese, para pôr os mais novos em situação. Na avenida, perto
da estátua do Soldado Desconhecido, onde, hoje, se encontra um
supermercado, existia um estabelecimento de louça utilitária,
pertencente ao senhor Armando Madaíl, junto ao qual tinha aberto o
estúdio fotográfico do senhor Alberto Pires, que ostentava o reclame
A. Pires, escrito em tubo de néon amarelo.
– Se eu estivesse no lugar do senhor Armando, encomendava um letreiro
com a mesma letra e cor, dizendo: e Chávenas.”
Amigo Vasconcelos, se ainda fosse vivo, não faltaria gente a quem dar o
conselho de ir gozando este mundo e de ir prometendo um mundo melhor aos
votantes.
28.01.2015
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