Ficções e Recordações - 2015

O cassetete

Numa noite de finais de Maio de 1954, os 65 Finalistas do Liceu Nacional de Aveiro, 23 meninas e 42 rapazes, participaram no tradicional Jantar de Fim de Curso que teve lugar, como era hábito, na então Pensão Imperial, hoje hotel com o mesmo nome. Mesa em U, topo para o Reitor, professores convidados e representante dos alunos; perna da direita para o sexo feminino e a da esquerda para o masculino.

Aviados os quatro pratos, precedidos de sopa, seguidos de doce e fruta e regados a branco e tinto, pelo centro e ala esquerda, mas só a água e sumos, pelas meninas, e feitos os discursos, tocou a destroçar.

As jovens dirigiram-se a penates, acompanhadas por familiares e/ou similares e os jovens resolveram ir para o que se chama agora a night que, como não havia cafés nem bares abertos, até tarde, consistia em andar pela cidade bebendo umas garrafósias, que chacun levava, antecipando-se, assim, em largas dezenas de anos, o botellón espanhol, mas sem fazer grande banzé, porque a Polícia não permitia barulho, depois das 22H00.

A certa altura, surgiu uma proposta:

– E se fôssemos para o Parque?

Esta sugestão, que hoje nada teria de especial, na altura era contestatária e revestia-se de riscos, porque, depois das 17H00, era vedada a entrada do vasto recinto por altas grades e portões, de que resta o troço da avenida Araújo e Silva, até que alguém se lembre de fazer umas massas com ele, no sucateiro.

A única excepção era aberta para os treinos e jogos de hóquei em patins, basquetebol e andebol que tinham lugar, no rink, situado junto à avenida Artur Ravara, e que, mau grado as suas notórias funções (não só desportiva, fizeram-se lá campeões nacionais, mas também social, durante muitos anos foi o único recinto onde os aveirenses, mesmo os que não praticavam desportos de competição, podiam praticar as preditas modalidades), foi bárbara, insensível e incompreensivelmente destruído, para desgosto dos muitos que o utilizaram, durante largas dezenas de anos.

A proposta foi aprovada e o maralhal invadiu o Parque, saltando as pequenas portas da Pérgola do Jardim. Consumada a primeira transgressão, partiu-se para a segunda: passeios nos três ou quatro barquitos do lago. Acontece que esta invasão não passou despercebida a alguns clientes do pequeno café do Jardim, que avisaram o guarda do Parque, o senhor Adriano, que resolveu chamar a Polícia.

Mal se pressentiu que estava a chegar um destacamento policial, a malta iniciou uma retirada estratégica, especialmente através dos dois locais onde os gradeamentos eram mais baixos: portão do campo de futebol e junto ao muro do Hospital, na já referida avenida Artur Ravara, à época chamada ladeira do Hospital e, hoje, baptizada ladeira dos Camelos, dado o grande número de bossas – oito ressaltos para cada lado – pronunciada e despropositadamente marcadas, no piso, onde circulam as ambulâncias que se dirigem diariamente ao Hospital, transportando doentes, para quem os inevitáveis  pulos não são desejáveis nem aconselhados. Os agentes da autoridade revistaram a área, com mais pressa que afã, só tendo encontrado um capa e batina escondido entre as canas junto ao embarcadouro do lago.

– Pisga-te, pá!

– Senhor Guarda, não estou habituado a andar sozinho, às escuras.

– Então, vais dentro. (Disse, o agente, pensando na chatice que seria preencher um Auto de Detenção.)

Acabada a busca, o destacamento dirigiu-se, enquadrando o detido, às escadarias do Jardim, na Pérgola do qual já se tinham concentrado os ex-invasores, sendo recebido com vaias, assobiadelas e cantos de cuco. Mau grado os argumentos e estratagemas utilizados, não se conseguiu a libertação do prisioneiro.

Chegados à Esquadra da Praça Marquês de Pombal, foi resolvido pedir a entrada de um grupo, que foi concedida, para solicitar a libertação do prisioneiro. No compartimento onde a comissão foi recebida, encontrava-se o graduado de serviço, sentado a uma secretária junto à parede da esquerda, tendo, defronte de si, o detido. No lado oposto, estava fixada, de fora-a-fora, uma tábua azul com furos, onde estavam enfiados muitos cassetetes.

Durante as conversações, começou a verificar-se um certo vaivém, entrando e saindo estudantes, tendo sido dito ao colega preso, que ainda não tinha sido identificado:

– Põe-te a milhas, pá, vai para casa e não apareças mais hoje.

 A determinada altura, o chefe perguntou pelo detido. Depois de se ter constatado a sua ausência, pregou o raspanete regulamentar, acompanhado com um sorriso compreensivo e terminando com:

– Vão-se embora, tenham juízo e não vos quero ver, outra vez, esta noite, se não vamos ter o caldo entornado.
 
Após os agradecimentos, o pessoal arrancou e, já perto do Teatro Aveirense, o cleptómano do grupo, que se gabava de ter, no quarto onde estava hospedado, puxadores das antigas campainhas de cordel, números de porta, sinais de trânsito, vasos de jardim, cartazes de cinema e, ainda, equipamentos para uma equipa de basquetebol, surripiados nas aulas de ginástica, não se conteve:

– Eh pá, foi porreiro, arranjei a jóia da minha colecção, este cassetete!

– Este gajo é maluco! Tens de lá ir pôr isso imediatamente.

– Lá isso é que não ponho.

– Pões, pões, a bem ou a mal. Então não vês que os cucos nos viram a todos e que, quando toparem que falta um cassetete, vamos todos dentro.

– Bem o gajo põe, mas como é que se vai fazer isso?

Após várias propostas mais ou menos disparatadas, ouviu-se:

– Eh pá, vamos lá dizer ao chefe que a malta resolveu agradecer-lhe, oferecendo-lhe uma garrafa de espumante.

Assim foi eficazmente feito, só não tendo sido aceite a garrafa. Desta rapaziada, de que só dou a conhecer o meu nome, ainda vivemos cinco em Aveiro. Todavia, não resisto a referir o nome do saudoso Chefe Dias, porque era, para os estudantes e não só, um gajo da corda, o que, em linguagem estudantil actual, equivale a um man bué da cool

03.02.2015