Numa noite de finais de Maio de 1954, os 65 Finalistas do Liceu Nacional
de Aveiro, 23 meninas e 42 rapazes, participaram no tradicional Jantar
de Fim de Curso que teve lugar, como era hábito, na então Pensão
Imperial, hoje hotel com o mesmo nome. Mesa em U, topo para o
Reitor, professores convidados e representante dos alunos; perna da
direita para o sexo feminino e a da esquerda para o masculino.
Aviados os quatro pratos, precedidos de sopa, seguidos de doce e fruta e
regados a branco e tinto, pelo centro e ala esquerda, mas só a água e
sumos, pelas meninas, e feitos os discursos, tocou a destroçar.
As jovens dirigiram-se a penates, acompanhadas por familiares e/ou
similares e os jovens resolveram ir para o que se chama agora a night
que, como não havia cafés nem bares abertos, até tarde, consistia em
andar pela cidade bebendo umas garrafósias, que chacun
levava, antecipando-se, assim, em largas dezenas de anos, o botellón
espanhol, mas sem fazer grande banzé, porque a Polícia não permitia
barulho, depois das 22H00.
A certa altura, surgiu uma proposta:
– E se fôssemos para o Parque?
Esta sugestão, que hoje nada teria de especial, na altura era
contestatária e revestia-se de riscos, porque, depois das 17H00, era
vedada a entrada do vasto recinto por altas grades e portões, de que
resta o troço da avenida Araújo e Silva, até que alguém se lembre de
fazer umas massas com ele, no sucateiro.
A única excepção era aberta para os treinos e jogos de hóquei em patins,
basquetebol e andebol que tinham lugar, no rink, situado junto à
avenida Artur Ravara, e que, mau grado as suas notórias funções (não só
desportiva, fizeram-se lá campeões nacionais, mas também social, durante
muitos anos foi o único recinto onde os aveirenses, mesmo os que não
praticavam desportos de competição, podiam praticar as preditas
modalidades), foi bárbara, insensível e incompreensivelmente destruído,
para desgosto dos muitos que o utilizaram, durante largas dezenas de
anos.
A proposta foi aprovada e o maralhal invadiu o Parque, saltando as
pequenas portas da Pérgola do Jardim. Consumada a primeira transgressão,
partiu-se para a segunda: passeios nos três ou quatro barquitos do lago.
Acontece que esta invasão não passou despercebida a alguns clientes do
pequeno café do Jardim, que avisaram o guarda do Parque, o senhor
Adriano, que resolveu chamar a Polícia.
Mal se pressentiu que estava a chegar um destacamento policial, a malta
iniciou uma retirada estratégica, especialmente através dos dois locais
onde os gradeamentos eram mais baixos: portão do campo de futebol e
junto ao muro do Hospital, na já referida avenida Artur Ravara, à época
chamada ladeira do Hospital e, hoje, baptizada ladeira dos Camelos, dado
o grande número de bossas – oito ressaltos para cada lado – pronunciada e
despropositadamente marcadas, no piso, onde circulam as ambulâncias que
se dirigem diariamente ao Hospital, transportando doentes, para quem os
inevitáveis pulos não são desejáveis nem aconselhados. Os agentes da
autoridade revistaram a área, com mais pressa que afã, só tendo
encontrado um capa e batina escondido entre as canas junto ao
embarcadouro do lago.
– Pisga-te, pá!
– Senhor Guarda, não estou habituado a andar sozinho, às escuras.
– Então, vais dentro. (Disse, o agente, pensando na chatice que seria
preencher um Auto de Detenção.)
Acabada a busca, o destacamento dirigiu-se, enquadrando o detido, às
escadarias do Jardim, na Pérgola do qual já se tinham concentrado os
ex-invasores, sendo recebido com vaias, assobiadelas e cantos de cuco.
Mau grado os argumentos e estratagemas utilizados, não se conseguiu a
libertação do prisioneiro.
Chegados à Esquadra da Praça Marquês de Pombal, foi resolvido pedir a
entrada de um grupo, que foi concedida, para solicitar a libertação do
prisioneiro. No compartimento onde a comissão foi recebida,
encontrava-se o graduado de serviço, sentado a uma secretária junto à
parede da esquerda, tendo, defronte de si, o detido. No lado oposto,
estava fixada, de fora-a-fora, uma tábua azul com furos, onde estavam
enfiados muitos cassetetes.
Durante as conversações, começou a verificar-se um certo vaivém,
entrando e saindo estudantes, tendo sido dito ao colega preso, que ainda
não tinha sido identificado:
– Põe-te a milhas, pá, vai para casa e não apareças mais hoje.
A determinada altura, o chefe perguntou pelo detido. Depois de se ter
constatado a sua ausência, pregou o raspanete regulamentar, acompanhado
com um sorriso compreensivo e terminando com:
– Vão-se embora, tenham juízo e não vos quero ver, outra vez, esta
noite, se não vamos ter o caldo entornado.
Após
os agradecimentos, o pessoal arrancou e, já perto do Teatro Aveirense, o
cleptómano do grupo, que se gabava de ter, no quarto onde estava
hospedado, puxadores das antigas campainhas de cordel, números de porta,
sinais de trânsito, vasos de jardim, cartazes de cinema e, ainda,
equipamentos para uma equipa de basquetebol, surripiados nas aulas de
ginástica, não se conteve:
– Eh pá, foi porreiro, arranjei a jóia da minha colecção, este
cassetete!
– Este gajo é maluco! Tens de lá ir pôr isso imediatamente.
– Lá isso é que não ponho.
– Pões, pões, a bem ou a mal. Então não vês que os cucos nos viram a
todos e que, quando toparem que falta um cassetete, vamos todos dentro.
– Bem o gajo põe, mas como é que se vai fazer isso?
Após várias propostas mais ou menos disparatadas, ouviu-se:
– Eh pá, vamos lá dizer ao chefe que a malta resolveu agradecer-lhe,
oferecendo-lhe uma garrafa de espumante.
Assim foi eficazmente feito, só não tendo sido aceite a garrafa. Desta
rapaziada, de que só dou a conhecer o meu nome, ainda vivemos cinco em
Aveiro. Todavia, não resisto a referir o nome do saudoso Chefe Dias,
porque era, para os estudantes e não só, um gajo da corda, o que, em
linguagem estudantil actual, equivale a um man bué da cool.
03.02.2015 |