Ao fim de tarde de um 30 de Setembro de mil novecentos e quarenta e
picos, acabado de chegar de 30 dias de férias na aldeia, onde não se
sabiam notícias e o futebol era totalmente desconhecido, mortinho por
dar uns chutos, peguei na trapeira, vim para a rua e desafiei o primeiro
amigo que encontrei para uma jogatana de um contra um.
– Podemos jogar pá, mas temos de fugir se vier o polícia.
– Porquê, pá? Não vamos fazer nada de mal!
– Mas os polícias não deixam, ficam com a bola e dizem que somos
multados.
– Porquê?
– Porque é proibido jogar à bola na rua.
– Essa agora! Então onde é que a gente pode jogar?
Para se compreender o meu espanto, torna-se necessário historiar o que
tinha sido o futebol de rua, até meados dos anos 40.
Começo pela bola, chamada trapeira e confeccionada com uma meia velha,
cuja ponta do pé se enchia de trapos – os de lã eram os melhores, pois a
bola ficava a saltar mais –, batendo-se, no chão, para ficarem bem
apertados; em seguida, torcia-se a meia e virava-se para cima,
repetindo-se esta operação, uma ou duas vezes, dependendo do tamanho da
meia, e fazendo-se, por fim, uma gola virada para dentro, com um furo
por onde se passava um cordel do qual se puxavam as pontas de maneira a
que a bola ficasse bem fechada, dando-se um nó final bem apertado e
cortando-se o fio sobrante.
Os campos, em Aveiro, eram todos de terra batida, porque, exceptuando a
zona envolvente da Praça do Peixe, que era revestida com a chamada
calçada à portuguesa, as ruas eram todas em macadame.
As balizas podiam ser portas de garagem ou o espaço entre duas árvores,
mas, na esmagadora maioria dos casos, eram demarcadas por duas pedras.
As regras eram as do futebol, mas adaptadas, pelo que havia normas
específicas e muitos dos nomes eram ditos em inglês; por exemplo:
- não havia “offsides”;
- quando eram só três jogadores, sendo um guarda-redes, quem estivesse a
defender e sofresse três golos ia para as redes e o “keeper” passava
para avançado;
- três “corners” seguidos originavam um “penalty”;
- como não havia relógio, mudava-se aos 5 e acabava-se aos 10.
Nas 5 Bicas, dispúnhamos de três campos, utilizados em função do número
de jogadores e da importância do encontro.
Se fosse um contra um, jogava-se no Largo, sendo a baliza o portão da
garagem do senhor Lopes, situada defronte do nº 64 da rua Eça de
Queirós. Neste lugar, podia também haver quatro jogadores e duas balizas
– o portão e uma feita de calhaus –, mas era preciso cuidado para não
partir os vidros das janelas.
Quando eram mais futebolistas, ia-se para a Castro Matoso, fazendo-se as
balizas com pedras, no meio da rua, e dependendo o comprimento do campo
do número de participantes, que podiam ir aumentando, durante o jogo,
mas situando-se a partir do canteiro ajardinado da porta do Depósito de
Material de Guerra do Regimento de Infantaria 10 e em direcção ao
cruzamento com a rua do Loureiro, numa zona onde, do lado contrário ao
Quartel, existia um renque de grandes e frondosas árvores.
Nestes dois recintos, quando passava um automóvel ou uma camioneta, o
que era raríssimo, parava-se o jogo, mas se fosse uma bicicleta ou um
carro de tracção animal, continuava-se, podendo, até, utilizar-se o
veículo para ajudar a ultrapassar os defesas.
Para jogos internacionais contra as Pombinhas ou contra São Domingos,
jogava-se na travessa das Olarias, actual travessa de São Martinho, onde
não havia praticamente trânsito a não ser uma ou outra bicicleta.
Como atrás se disse, nos primeiros tempos, a rapaziada continuou a jogar
fugindo aos polícias, cuja intensidade do zelo posto no cumprimento
da lei anti-futebol dependia muito do local onde a infracção se
praticasse. Se fosse no Largo, eram implacáveis; na rua Castro Matoso,
fechavam os olhos, a maior parte das vezes; na travessa das Olarias, até
lá morava o senhor João Polícia, sapateiro da corporação, não ligavam
nenhuma. Mas o trânsito foi aumentando e nós fomos crescendo, pelo que
acabámos por ter de ir de jogar à bola, para trás da velha bancada de
madeira do Estádio Mário Duarte.
Diga-se que esta medida repressiva não impediu o aparecimento de nenhuma
vedeta do futebol nacional, porquanto nenhum de nós veio a praticar
oficialmente esse desporto, se bem que alguns tivessem jeito, o que não
era o meu caso, pois tinha pés de chumbo, mas era perigoso, porque era
dos poucos rapazes que andavam calçados, pelo que uma calcadela das
minhas aleijava e uma canelada, mesmo sem maldade, deixava marcas.
Alguns dos cincobiquenses da altura jogaram basquetebol e eu, para além
do basquete, também andei no andebol do Clube dos Galitos, modalidades
que utilizavam o ex-rink do Parque.
Mas o futebol de rua não acabou, definitivamente, nas 5 Bicas, nos anos
quarenta. Quando foi urbanizada a chamada Quinta do Farela, que,
incluindo as casas, ocupava todo o quarteirão norte da rua Castro
Matoso, desde a rua do Loureiro até à avenida Araújo e Silva, foi criada
a actual praceta Ferreira de Castro, que serviu de recreio e campo
asfaltado, onde os meus filhos, trinta anos depois, jogaram futebol não
com trapeiras, mas com bolas a que chamavam de borracha, mas eram feitas
de material sintético.
Vou terminar, contando uma pequena história da minha meninice,
relacionada com o futebol de rua. Um de nós, não sei quem, teve a ideia
de formarmos um clube. Primeiro, discutimos o nome: os benfiquistas
propunham “Sport Lisboa e 5 Bicas” e os sportinguistas “Sporting Clube
das 5 Bicas”; o Porto, nessa época, não tinha expressão, em Aveiro. Não
tendo sido possível chegar a um acordo, optou-se por “5 Bicas Futebol
Clube”. Um familiar desenhou o emblema, que se destinava a ser passado a
papel químico para as nossas camisolas interiores. Mas subsistia um
problema importantíssimo: uma equipa de um clube não podia jogar com uma
trapeira, era uma vergonha, tinha que ter uma bola, pelo menos, de
borracha, mas nós não possuíamos dinheiro para a comprar.
Até que surgiu a solução: um rapaz um pouco mais velho do que nós, mas
nosso amigo, disse que nos arranjava uma. Ele era marçano de uma
mercearia da rua de São Sebastião que pertencia a um seu parente, tio ou
padrinho, onde se vendiam rebuçados que davam prémios directos –
espelhos, pentes, lápis, chocolates, bolas de borracha pequenas e
grandes e uma bola de futebol a sério –, sem ser preciso preencher
totalmente uma caderneta, como acontecia, por exemplo, com os rebuçados
«Victória», cujos carimbados (só havia um de cada numa lata) eram o
Bacalhau e a Preguiça. Prometeu-nos que, se comprássemos dez rebuçados,
que custariam dois escudos (€ 0,01), nos arranjaria um rebuçado com o
prémio de uma bola pequena, mas tínhamos de jurar que não diríamos nada
a ninguém.
Jurámos, trejurámos, juntámos o dinheiro, o que não foi fácil, porque
ninguém tinha semanada. Foi-nos dado o rebuçado mágico e eu fui
escolhido para ir à loja, porque, sendo o meu pai militar e a minha mãe
professora primária, era credível que tivesse um mealheiro com aquela
fabulosa importância. Entrei com o rebuçado premiado no bolso dos
calções, por baixo do lenço para não me enganar, comprei os dez
rebuçados e comecei a abri-los. No primeiro, saiu um pente e o merceeiro
disse “Estás com sorte”; o terceiro deu um chocolate de café, com uma
embalagem preta e ele resmungou “Estás com muita sorte”; no último,
tirei a bola e ouvi “Estás mesmo com muita, muita sorte”. Saí, fomos
inaugurar a bola, mas nunca a trouxe para casa, para não ter que dar
explicações sobre a sua proveniência.
Não tive conhecimento pormenorizado do que se passou entre o merceeiro e
o empregado, mas, mais tarde, vim a saber que os rebuçados
correspondentes aos prémios grandes, nesse e noutros jogos similares,
nunca estavam na caixa geral. O dono da loja guardava-os, na gaveta, e
só os dava aos amigos ou, então, aos bons clientes que comprassem os
últimos rebuçados, gastando largas dezenas de escudos.
No que respeita ao “5 Bicas Futebol Clube”, fez vários treinos, nunca
participou em nenhum jogo oficial, mas foi, como agora se diz, o meu
primeiro clube do coração.
23.06.2015 |